Por: Jorge Lopes
A responsabilidade inequívoca do Governo na crise da mobilidade marítima
O Acórdão do Tribunal Arbitral sobre a concessão dos transportes marítimos interilhas revelou com clareza inquietante a profundidade do fracasso político e técnico do Governo na condução de um dos setores mais estratégicos para um país arquipelágico como Cabo Verde.
O documento é inequívoco: o concessionário violou diversas obrigações contratuais essenciais — não respeitou os requisitos de constituição da empresa gestora, não fixou sede em Cabo Verde no prazo devido, não garantiu os serviços mínimos obrigatórios, e não assegurou os níveis mínimos de desempenho definidos no contrato. Mais grave ainda, o controlo operacional da concessão acabou nas mãos de um grupo estrangeiro, contrariando abertamente a matriz nacional originalmente prevista.
Por si só, estas falhas já configurariam matéria grave. Mas o que torna a situação verdadeiramente inadmissível é o facto de ter sido o próprio Estado, pela ação (ou inação) do Governo, a permitir e tolerar essa degradação — com uma passividade que se confunde com cumplicidade.
I. Incumprimentos contratuais: um padrão de desrespeito às obrigações essenciais
O Acórdão arbitral é categórico ao reconhecer múltiplos incumprimentos contratuais por parte do concessionário, muitos deles de natureza grave e comprometedora da própria lógica do serviço público concedido. Estes não foram episódios isolados ou pontuais, mas sim um padrão persistente de violação das cláusulas basilares da concessão, que demonstram ausência de compromisso com os interesses do país e dos cabo-verdianos.
Além disso, a concessionária não instalou sede social efetiva em Cabo Verde dentro dos prazos, falhou na garantia dos serviços mínimos obrigatórios e manteve níveis de desempenho abaixo dos padrões contratuais durante longos períodos, sem que houvesse correção adequada ou penalização proporcional.
Houve ainda modificações substanciais na estrutura operativa e acionista da concessão, feitas sem a necessária autorização do Estado, o que agravou o afastamento do modelo contratual original e aprofundou a dependência externa da operação.
Todos esses incumprimentos, acumulados e não corrigidos, deveriam ter motivado a aplicação rigorosa de cláusulas resolutivas, penalizações financeiras ou mesmo a rescisão contratual. Mas o que se viu foi o oposto: um Estado passivo, leniente, que assistiu ao desrespeito contratual com complacência inaceitável, sacrificando os direitos dos cabo-verdianos em nome de uma estabilidade contratual que, na prática, serviu apenas ao concessionário.
II. Sinais de amadorismo e despreparo
Este caso revela, de forma perturbadora, sinais evidentes de amadorismo ou ausência de competência especializada nas instâncias responsáveis por conceber e implementar a concessão. Não houve preparação adequada para lidar com os riscos típicos de um contrato desta natureza, nem capacidade institucional para reagir de forma eficaz aos desvios e incumprimentos verificados.
Como pode um Governo permitir a assinatura de uma adenda que, na prática, altera a lógica e o equilíbrio contratual, sem avaliar suas implicações profundas? Como pode o Estado assistir a incumprimentos sucessivos — sem exigir correções, sem acionar garantias e sem mobilizar os instrumentos legais à sua disposição? A resposta é dolorosa: faltou liderança, faltou visão, faltou competência.
III. O impacto brutal sobre a mobilidade nacional
A concessão mal concebida e pior executada dos transportes marítimos interilhas provocou um colapso silencioso mas profundo na mobilidade nacional — com consequências dramáticas para a vida das famílias cabo-verdianas e para a economia local e nacional.
A mobilidade, num arquipélago como Cabo Verde, não é apenas um meio de transporte: é a espinha dorsal de qualquer estratégia de desenvolvimento, a condição mínima para garantir coesão territorial, integração económica e equidade no acesso às oportunidades. Sem mobilidade eficiente, previsível e regular, o país fragmenta-se — socialmente, economicamente e politicamente.
No plano humano, milhares de famílias foram e continuam a ser penalizadas. Cidadãos que não conseguem deslocar-se entre as ilhas para visitar familiares, ou simplesmente exercer o seu direito básico de circular livremente no seu país.
Na economia, os efeitos são devastadores. A ineficiência e irregularidade das ligações marítimas criaram um verdadeiro bloqueio à circulação de bens e produtos, particularmente nas ilhas produtoras agrícolas. Produtos perecíveis são perdidos ou desvalorizados, por falta de meios de transporte fiáveis e horários previsíveis. Esse bloqueio anula qualquer possibilidade de acesso estável ao mercado nacional por parte dos pequenos agricultores, especialmente no escoamento para as ilhas turísticas como o Sal e a Boavista.
Assim, uma atividade agrícola já debilitada pela seca quase permanente vê-se completamente desvalorizada por um modelo de transporte que ignora as suas necessidades. Famílias inteiras que dependem do cultivo da terra para sobreviver ficam reféns de uma cadeia logística disfuncional, que desperdiça o seu esforço, anula os seus rendimentos e empurra comunidades para a pobreza e o abandono da produção.
O turismo, motor da economia cabo-verdiana, também é penalizado. A ausência de ligações consistentes e integradas entre as ilhas compromete o desenvolvimento do turismo interilhas e limita a experiência do visitante, que se vê impossibilitado de conhecer a diversidade cultural, ambiental e humana do país. O resultado é um modelo turístico desequilibrado, concentrado em duas ilhas e sem efeito multiplicador real nas restantes.
Em suma, esta concessão, ao falhar na sua missão central, bloqueou não apenas a circulação de pessoas e mercadorias, mas o próprio potencial de desenvolvimento sustentável do país. Ao invés de funcionar como motor de integração nacional, tornou-se num obstáculo crónico à mobilidade, à produtividade e à justiça territorial.
Repor a mobilidade marítima como eixo estratégico do desenvolvimento é uma urgência nacional.
IV. Condenação do Estado: o povo paga duas vezes pela irresponsabilidade do Governo
Além dos danos sociais e operacionais, o Acórdão impõe agora ao Estado o pagamento de avultadas compensações financeiras à concessionária — a título de indemnização compensatória e outros encargos contratuais acumulados. Trata-se de um desfecho inadmissível: o Estado, que falhou no papel de regulador e concedente, acaba condenado a pagar pelos seus próprios erros.
O povo cabo-verdiano paga duas vezes:
1. primeiro, com a degradação do serviço de transporte marítimo e
2. Depois, com os seus impostos, para cobrir os custos financeiros de uma concessão mal gerida.
Esses recursos — que poderiam reforçar hospitais, escolas ou as próprias infraestruturas portuárias — serão desviados para cobrir a fatura da má governação. É um golpe à confiança pública e um atentado à boa gestão do erário nacional.
Trata-se de um dano político, institucional e financeiro de grande magnitude. Cabo Verde é um país com recursos limitados, desafios sociais estruturais e uma juventude à procura de oportunidades. Não pode, em circunstância alguma, permitir que recursos públicos sejam desperdiçados para pagar erros políticos evitáveis, resultantes de má governação e negligência técnica.
V. Uma decisão que protege o contrato, mas sacrifica o interesse público
A decisão do Tribunal Arbitral de não aceitar a possibilidade de resolução unilateral do contrato por parte do Estado baseou-se em argumentos formais: a tolerância do concedente, as justificações operacionais apresentadas pelo concessionário e a ambiguidade gerada por falhas de fiscalização e pela própria adenda contratual.
No entanto, essa abordagem — excessivamente indulgente e centrada em vícios formais — ignora o essencial: os impactos reais e negativos que o incumprimento da concessionária provocou no país e na vida dos cidadãos. Ao privilegiar a estabilidade contratual acima da qualidade do serviço e do interesse público, o Tribunal acaba por legitimar um modelo de concessão que falhou estruturalmente.
A manutenção da exclusividade nas atuais condições perpetua falhas sistémicas, limita a capacidade de intervenção do Estado e compromete a confiança dos cidadãos num serviço público vital. Esta decisão, embora juridicamente fundamentada, revela um desfasamento grave entre o formalismo contratual e a urgência de proteger a mobilidade, a coesão territorial e a soberania operacional de Cabo Verde.
VI. Responsabilidade política: uma exigência democrática
Diante da magnitude dos danos causados ao país por esta concessão falhada — do impacto na vida dos cidadãos à fatura financeira imposta ao Estado —, é incontornável a necessidade de se apurar, com clareza e seriedade, as responsabilidades políticas subjacentes. Não se trata de um episódio técnico ou de uma falha administrativa pontual. Trata-se de um erro estratégico grave, cujos efeitos se espalham por todo o território nacional e penalizam a confiança do povo nas instituições públicas.
O Governo, ao conceber, negociar, formalizar e deixar deteriorar esta concessão sem a devida supervisão, falhou no cumprimento do seu dever constitucional de proteger o interesse público. A forma como o contrato foi gerido — com omissões, tolerâncias e decisões ambíguas — compromete a credibilidade do Estado como concedente e enfraquece o seu papel como garante de serviços públicos essenciais.
Em contextos democráticos maduros, situações desta natureza exigem mais do que explicações técnicas ou comunicados evasivos. Exigem prestação de contas políticas e assunção de responsabilidades por parte dos decisores que permitiram que o país chegasse a este ponto. A confiança do povo não é um cheque em branco. Ela exige transparência, coerência e, sobretudo, consequências quando se falha de forma tão evidente.
É tempo de reconhecer que o que está em causa não é apenas um contrato mal executado. O que está em causa é a qualidade da governação, a seriedade da gestão pública e o respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos. Ignorar esta realidade é abrir espaço à impunidade e aprofundar o fosso entre o Estado e os que nele depositam a sua esperança de justiça e progresso.
Condenação disfarçada de promessa: quando o Estado paga e o privado lucra
O que está a acontecer com a concessão dos transportes marítimos interilhas em Cabo Verde é, simplesmente, revoltante. Depois de anos de incumprimentos contratuais, degradação do serviço e sofrimento diário das populações insulares, a CV Interilhas vem agora, em tom festivo, anunciar investimentos com o dinheiro da compensação que o Estado foi condenado a pagar — como se nos estivesse a fazer um favor.
Importa recordar: esses investimentos já constavam do contrato assinado há cinco anos. Eram obrigações básicas, nunca cumpridas. E, agora, com os recursos públicos resultantes de uma sentença arbitral — que representa uma derrota institucional para o Estado —, a empresa reaparece como se estivesse a iniciar um novo ciclo. Não está. Está apenas a tentar limpar a imagem depois de anos de falhas graves.
Esta opinião é motivada pela recente nota de imprensa publicada pela CV Interilhas, na sequência do Acórdão arbitral que condena o Estado de Cabo Verde. Diante da tentativa de converter uma condenação do Estado em propaganda de investimentos tardios, impõe-se um grito cívico de indignação. Quando o interesse público é sacrificado e o Estado exposto à humilhação institucional, o silêncio não é opção.
O mais grave é que os navios que agora se propõe comprar já provaram não ter as mínimas condições para garantir um serviço regular, eficiente e seguro entre as ilhas. São embarcações que falham na resposta às reais necessidades da mobilidade marítima nacional — um setor vital para a coesão territorial, o turismo e a economia agrícola.
Custa acreditar, mas é isso que nos está a ser imposto: o próprio grupo privado que falhou nas obrigações contratuais irá adquirir os navios com o dinheiro que o Estado — e, portanto, todos nós — é agora forçado a pagar. Na prática, estamos a subsidiar o concessionário com recursos que deveriam estar a servir o povo e a corrigir as assimetrias geradas por uma concessão malfeita e mais mal acompanhada.
Cabo Verde não pode aceitar esta inversão de valores. O Estado não pode continuar a ser o elo mais fraco nas relações público-privadas, nem permitir que a sua dignidade institucional seja atropelada em praça pública. Esta não é uma solução. É a institucionalização do fracasso como norma — e a rendição da soberania nacional perante interesses privados.
Como cidadão, recuso-me a normalizar esta farsa. O país precisa de verdade, de coragem e de justiça. E essa começa por dizer, sem rodeios: não há futuro digno para esta concessão sem respeito pelo interesse público e pela integridade do Estado cabo-verdiano. JL
