Por: Germano Almeida
O primeiro-ministro de Cabo Verde tranquilizou os cabo-verdianos comunicando solenemente ter apresentado queixa-crime contra quem o acusou de ser sócio da sociedade CVInterilhas.
Ulisses tem toda a razão em ter ficado ofendido e merece aplausos que tenha recorrido aos tribunais para limpar o seu nome do anátema de estar associado a uma empresa que tanto mal conseguiu fazer ao povo cabo-verdiano em tão pouco tempo. Ulisses considera as afirmações sobre a sua qualidade de sócio da CVInterilhas como difamatórias e sublinha que afetam de forma significativa a sua honra, reputação e a sua imagem.
Absolutamente de acordo! Não fica bem a nenhum cidadão cabo-verdiano que se sinta visceralmente filho destas ilhas ver ou ter o seu nome associado a uma empresa que, em termos de delapidação desenfreada das gentes das ilhas, só encontramos comparação e paralelo com a Companhia de Grão-Pará e Maranhão de muito má memória na nossa história. E é curioso que ambas tenham tido concessão de 20 anos para nos espoliar.
Mas se é verdade que a Companhia de Grão-Pará e Maranhão tinha um objetivo nobre, a saber, enriquecer a economia de Portugal, a CVInterilhas parece ter ficado pelo mesquinho objetivo de sugar e enganar o povo cabo-verdiano a favor do bolso dos seus sócios.
É triste, é indigno! Porém, na consecução desse baixo objetivo, seria injusto ignorar o ativo concurso que tiveram dos asseclas nacionais, a começar por alguns membros do governo de Cabo Verde, a terminar nos diligentes serventuários que foram arrebanhando por aqui.
Mas o que pessoalmente achei mais admiravelmente sem vergonha é o cinismo dos donos dessa sociedade. Passaram anos a nos tratar como se não fossemos gente, troçando dos passageiros dos seus navios podres de velhos, parece que apanhados na sucata. Mas agora que um contrato elaborado a três pancadas manda entregar-lhes um balúrdio de dinheiro, apressam-se a dizer que com essa massa vão já comprar um navio novo. É realmente preciso ter abundância de descaramento!
A CVInterilhas é o exemplo mais acabo de neocolonialismo que tem passado por aqui. Já tivemos os islandeses que nos enganaram à sua vontade e foram-se embora; já tivemos os Binter que, segundo disse o primeiro-ministro, entraram no país através de um memorando de entendimento, nos exploraram alegremente e depois nos deixaram sem dizer água vai. Porém, nada se compara à pouca vergonha que é a CVInterilhas. Esta parece ser o exemplo mais perfeito e refinado de neocolonialismo no seu estado de maior pureza.
Deveria envergonhar-nos como país de gente não destituída de inteligência, termos deixado enganar por pessoas espertas, sem dúvida, mas certamente não sobredotadas. A menos que se venha a saber de alguma cumplicidade interna, melhor, que a denuncia que o jornalista Hermínio Silves faz do ministro Olavo Correia de ter acrescentado matéria ao contrato depois da aprovação em conselho de ministros, seja verdadeira. Porque caso seja, não é apenas uma falta política a exigir demissão. É também uma ação criminosa que imporia procedimento criminal se não estivéssemos num país onde a legalidade há muito deixou de ter significado.
Vejamos: a CVInterilhas foi constituída com um capital social dito realizado de 50 milhões de escudos. O seu objeto social é o transporte marítimo de pessoas, mercadorias e viaturas entre as ilhas. Para isso precisa de navios, e o capital social, dito realizado, destina-se exatamente a isso: adquirir os meios necessários à efetivação do seu objeto social.
E, no entanto, esta sociedade está em atividade desde 2019 e, até agora, não tem sequer um único navio próprio! Opera com navios afretados! Mas afretados a quem? A um dos seus sócios! Isso por si só já seria uma perversa mas perfeita relação neocolonial.
Mas faltava mais um toque para que a relação neocolonial ficasse mais que perfeita: que é vir a CVInterilhas finalmente a adquirir navios. Mas com dinheiros que for obtendo de indemnizações que for ganhando do Estado de Cabo Verde de cada vez que lhe passar a perna acusando-o de incumprimento do contrato.
A gente desta laia o poeta João Vário chamava de passadores de pau. Mas sem dúvida nenhuma que o Estado mais uma vez se pôs a jeito. Ainda em Cabo Verde, quando se busca um técnico em qualquer área, a primeira questão a se querer conhecer é a sua pertença ou simples simpatia pelo PAICV ou pelo MpD. E definida essa parte importante, logo abunda a competência para seja o que for. O presidente Aristides Pereira repetia sempre que a única riqueza de Cabo Verde é a sua gente. E a mim sempre me ocorria quando o ouvia, por isso somos tão pobres! Mas honra seja feita, o advogado Simão Monteiro parece ter-se portado briosamente na defesa dos interesses de Cabo Verde, não se lhe pode lançar desdouro. Pena foi ele ter borrado a pintura ao isentar o ministro da obrigação de ler o texto final do contrato. Tinha sim esse dever, se não por imperativo da função, pelo menos por brio pessoal. Todos aprendemos na faculdade que in claris non fit interpretion. Mas também aprendemos que só depois de ler e interpretar é que podemos concluir que não é necessária nenhuma interpretação particular.
O Governo prometeu “defender o Estado até ao limite” neste desonroso caso de indemnização à CV Interilhas. Desonroso porque desde que entrou a operar, a CVI mostrou não pertencer à classe de gente séria, veio para aqui passar-nos pau e afincou-se nessa prática. Mas o que verdadeiramente mais se estranha é a falta de vergonha de ver os maiores incumpridores neste contrato a pedir e a ganhar indemnização por incumprimento. É de um cinismo que parece não ter qualquer limite. Será que nós ficámos assim tão estúpidos! Até parece que o Évora tem razão diante de tanta incúria. Porque nada justifica ter uma sociedade de capital maioritariamente estrangeiro, com um caderno de encargos cujo cumprimento ficou em zero. Com um governo a sério no país, esse contrato há muito deveria ter sido denunciado, pois que afretar navios velhos a uma empresa chamada ETE está ao alcance de qualquer aprendiz de armador.
Esse malfadado contrato que redundou em prejuízo para a maioria dos armadores nacionais e para toda a população que se movimenta entre as ilhas, causou graves danos à economia nacional. Poderia servir de prova de que não se constrói um país com pessoal estrangeiro, mas como não são os primeiros a passar-nos pau, certamente não serão os últimos.
