Por: João Serra*
A ligeireza com que o Governo trata o dinheiro público já não é apenas uma metáfora caricata do “dinheiro que nunca mais acaba” – tornou-se um fardo real e insustentável para os cidadãos. O Executivo comporta-se como se vivesse num país de recursos ilimitados, ignorando a realidade elementar de que, em nenhuma parte do mundo, o dinheiro é infinito.
A sucessão de decisões políticas que ignoram critérios de eficiência, sustentabilidade e responsabilidade fiscal está a transformar o Estado num organismo inchado, dispendioso e, por vezes, disfuncional. A gestão do erário público assemelha-se a um teatro do absurdo, onde milhares de milhões de escudos – doravante milhões de contos – evaporam-se em empresas públicas falidas, em contratos de concessão e na criação de novas estruturas praticamente sem serventia, em detrimento de uma visão estratégica para o país e da transparência.
Os exemplos são tão inúmeros quanto preocupantes. Seguem-se alguns.
Nos últimos anos, temos assistido a uma longa sequência de decisões governamentais que evocam o famoso tear de Penélope: desfaz-se e constrói-se tudo outra vez. O caso da TACV/CVA é paradigmático de um círculo vicioso em que privatizações apressadas, nacionalizações repentinas e promessas falhadas custam largos milhões de contos ao contribuinte, sem que os benefícios reais para a população sejam evidentes.
Em 2019, o Governo vendeu, por ajuste direto, 51 % da companhia aérea ao grupo Icelandair por apenas 1,3 milhões de euros, apresentando a transação como “um marco da reestruturação dos transportes aéreos em Cabo Verde”. O Estado assumiu um passivo superior a 10,6 milhões de contos, criando a empresa pública NEWCO para absorver as dívidas.
Segundo dados publicados pelo jornal online Santiago Magazine (edição de 16 de abril de 2021), ao longo do mandato anterior – e sobretudo após a privatização da TACV, em março de 2019 –, o Governo autorizou vários avales à TACV/CVA num montante superior a 13 milhões de contos. Mesmo assim, os islandeses da Icelandair jamais cumpriram a promessa de trazer 11 aviões, e o défice da companhia triplicou, passando de 2,3 milhões de contos em 2016 para 6,6 milhões em 2019.
Após a renacionalização da TACV/CVA, em julho de 2021, o Governo continuou a injetar, indiretamente, rios de dinheiro na companhia, para impedir o seu afundamento geral e manter viva a chama de uma eventual retoma. Entre julho de 2022 e julho de 2025, o montante publicamente conhecido atingiu pelo menos 4,365 milhões de contos, entre garantias soberanas e avales.
No total, entre 2017 e 2025, o Estado terá assumido compromissos financeiros com a TACV/CVA no valor aproximado de 28 milhões de contos (cerca de 255 milhões de euros), excluindo as injeções diretas de capital. Considerando que a empresa dificilmente cumprirá os compromissos assumidos, garantidos ou avalizados pelo Estado, este poderá ter comprometido o equivalente a cerca de 13 % do PIB real de 2023. Trata-se de um rácio sem precedentes a nível mundial, em consonância com a convicção expressa pelo Ministro das Finanças de que “Cabo Verde tem dinheiro que nunca mais acaba”.
Sem uma estratégia clara para a empresa – e sem transparência nas contas desta “novela” –, cada volta do tear de Penélope da TACV/CVA representa desperdício de recursos que poderiam ter sido investidos em saúde, educação e em serviços sociais, ou na reposição do poder de compra dos cabo-verdianos.
A gestão da TACV/CVA revela mais do que incompetência ou má sorte: espelha um padrão de governação assente no improviso, na opacidade e na recusa de prestar contas. Os contratos com a Icelandair foram, durante muito tempo, ocultados à opinião pública e aos partidos da oposição, que os solicitavam insistentemente.
Porém, esse padrão de decisões contraditórias não é exclusivo da TACV/CVA. O inchaço do aparelho estatal e a criação de estruturas supérfluas tornaram-se uma constante desde 2016. Surgem, a cada ano, novos institutos, direções-gerais, empresas públicas, etc. A lógica é sempre a mesma: criar estruturas para responder a problemas que poderiam ser resolvidos com melhor gestão das existentes, ou para absorver quadros do partido no poder, ou seja, “jobs for the boys”. O resultado é um Estado obeso, caro, lento e excessivamente partidarizado.
Um dessas estruturas é a Autoridade da Concorrência (AdC), criada sem uma análise séria da sua necessidade. Cabo Verde é um mercado pequeno, com poucos operadores em cada setor. A concorrência, quando existe, é naturalmente limitada. Criar uma entidade autónoma para fiscalizar práticas anticoncorrenciais num mercado tão reduzido é, no mínimo, questionável.
Ainda mais grave é o facto de a AdC duplicar funções já atribuídas a outras entidades reguladoras. Em vez de reforçar as capacidades existentes, o Governo optou por criar mais uma estrutura. A leveza institucional aqui é evidente: cria-se porque se pode, não porque se deve.
A criação da empresa pública Água de Rega (AdR) é outro exemplo de como o Estado prefere criar estruturas a resolver problemas. A AdR surgiu com a promessa de gerir de forma integrada os recursos hídricos para a agricultura, passando a gerir uma linha de crédito de 35 milhões de euros, disponibilizada pela Hungria, para financiar projetos de irrigação.
Apesar da retórica oficial – aumentar a resiliência agrícola às alterações climáticas – críticos questionam a efetiva utilidade do AdR face à multiplicação de órgãos de regulação no setor e à sobreposição de funções existentes. Por outro lado, passados vários anos, os agricultores queixam-se da escassez de água, da má qualidade na distribuição e da ausência de apoio técnico. Além disso, não existem indicadores públicos de desempenho nem relatórios de impacto. A leveza aqui é dupla: na criação da estrutura e na falta de exigência de resultados.
As consequências desta leveza insustentável na gestão do dinheiro dos cabo-verdianos são palpáveis. As despesas correntes do Estado dispararam durante os nove anos de governação do MpD: de 34,8 milhões de contos em 2015 passaram para 78,9 milhões de contos em 2025 (OE2025), um aumento de 127,1 %. No mesmo período, as despesas com pessoal subiram de 15 milhões de contos para 34 milhões de contos, um incremento de 126,7 %. A dívida pública oficial deverá passar de 200 milhões de contos em 2015 para 312,2 milhões de contos em 2025, crescendo 56,1 %, o que faz com que as despesas com os juros da dívida aumentem de 5 milhões de contos para 10 milhões de contos, um acréscimo de 100 %.
Contudo, este brutal e insustentável aumento das despesas de funcionamento do Estado não corresponde a melhorias nos serviços públicos, como já escrevi em outros artigos de opinião. A leveza aqui é estrutural: o Estado cresce sem critério, sem avaliação e sem rumo.
A leveza do Governo cabo-verdiano na gestão do dinheiro público não é apenas uma falha técnica – é uma falência ética. Cada decisão mal pensada, cada estrutura criada sem necessidade e cada escudo gasto sem critério representam oportunidades perdidas para melhorar a vida dos cabo-verdianos.
Praia, 02 de agosto de 2025
*Doutorado em Economia
