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Diáspora

A luta por um visto: Histórias reais da emigração em Portugal

Enquanto muitos cabo-verdianos enfrentam longas filas e altos custos para obterem um visto para Portugal, os que já emigraram, e que vivem nesse país, revelam uma realidade marcada por desafios, superações e, às vezes, a frustração entre o sonho que se leva e a realidade que se encontra. Nestes tempos de forte apelo migratório é hora de olhar para o outro lado da mesma moeda.

Na cidade da Praia, no Shopping da Praia, tornou-se comum ver quase todos os dias uma multidão de gente à espera de poder entregar à VFS Global os documentos para o sonhado visto de trabalho, em Portugal. A maior parte jovens, entre os candidatos, constam estudantes, recém-formados, desempregados ou trabalhadores com contratos temporários… Todos têm algo em comum: a busca por uma vida melhor fora do país-natal, Cabo Verde.

A ideia de emigrar, embora antiga, mostra-se urgente e necessária, especialmente para os jovens que não vêem oportunidades de trabalho, estabilidade ou crescimento no próprio país.

Um dos jovens entrevistados, que preferiu não se identificar relatou ao A NAÇÃO as dificuldades diárias para ser atendido na VFS Global, o que para ele constitui uma prova de resistência e paciência. “Venho todos os dias bem cedo à VFS para conseguir ser atendido. Outras pessoas, que vivem longe, no interior da ilha, chegam a dormir, na cidade da Praia, só para pôr o nome numa lista. No fim do dia, muitas vezes nem conseguimos ser atendidos.”

O peso económico de um sonho

Artimisa, de 40 anos, é uma outra prova viva do quanto o processo de visto pode ser difícil. Vendedora ambulante, vive em casa arrendada com as duas filhas, de sete e 17 anos, e sonha com uma vida melhor para todas. Mas, como conta, o caminho não tem sido fácil.

“Fui pedir o visto em Março. Entreguei os documentos, mas disseram-me que os nomes e a data de nascimento estavam mal escritos. Em Abril voltei a entregar. Em Junho notificaram-me de novo e disseram que, se não comparecesse em 15 dias, iam devolver-me os documentos.”

Durante o processo, Artimisa sentiu-se obrigada a “comprar” dois contratos de trabalho: o primeiro não foi aceite; o segundo custou-lhe cerca de mil euros (110 mil escudos). Entre taxas, viagens, contratos e outras despesas, segundo ela, já gastou cerca de 300 mil escudos.

 “Vendo na rua, e esse dinheiro que já gastei dava para começar uma casa e sair do aluguer. Tenho uma filha de 19 anos que já está em Portugal, e as outras duas não as posso deixar aqui, têm de ir comigo. O pior é se recusarem o visto depois de todo o dinheiro investido para tentar uma vida melhor para mim e para os meus filhos”, desabafa com temor.

Outro jovem, Luís (nome fictício), partilha a mesma frustração e ansiedade: “Já trabalhei na construção civil, mas nunca consegui estabilidade. Aqui, por mais que se tente, nunca dá certo. Cresci a ouvir que em Portugal as coisas são diferentes, que se uma pessoa trabalhar bem consegue ter uma vida digna, e é por isso que eu insisto nisto”, confessa.

O jovem acrescenta ainda que o processo no VFS Global tem sido difícil, pois, tem que acordar muito cedo, deixar o nome na lista e esperar horas, dias, semanas, sempre com incertezas. “Quero trabalhar, ajudar a minha família”, acrescenta, com a a esperança de reencontrar familiares e amigos o mais breve possível em Portugal.

Numa altura em que a emigração volta a crescer em Cabo Verde, estas histórias revelam o lado menos visível do processo, madrugadas na fila, a ansiedade da espera e o receio de um “não”, depois de tanto esforço e dinheiro gasto para o necessário visto.

Do outro lado do mar: a vida recomeça

Mas mesmo após cruzar o Atlântico, depois de quatro horas de voo, a vida não se torna automaticamente fácil. Em Portugal, a realidade dos imigrantes cabo-verdianos varia entre o sucesso e a sobrevivência. É o que se deduz dos vários casos recolhidos também por esta reportagem.

Sondeia Gonçalves

Sondeia Gonçalves tem 28 anos, é natural da Assomada, Santa Catarina, e licenciada em Contabilidade e Administração. Em 2019, conseguiu mudar-se para Portugal para frequentar o mestrado em Fiscalidade. Para custear os estudos e as despesas diárias, começou por trabalhar na limpeza, acordando todos os dias às 4h30 e só regressava a casa por volta da meia-noite. A burocracia portuguesa foi um dos maiores obstáculos.

“Cada instituição dizia uma coisa diferente sobre os documentos. Até a mesma instituição dava informações contraditórias, dependendo do funcionário”, recorda.

Durante o confinamento da covid-19, Sondeia começou a prestar pequenos serviços administrativos a amigos, como pedidos de senha nas Finanças ou declarações de IRS. Aos poucos, a procura foi aumentando. Com determinação, transformou essa actividade extra num projecto mais sólido. Abriu a sua própria agência, a VERTENTÁGIL, especializada em documentação e apoio a imigrantes.

 “Comecei com uma mesa e um computador na sala da minha casa, e muitos sonhos na cabeça. Hoje tenho um espaço físico que representa dedicação, força, foco, fé e muita resiliência”, partilha com orgulho.

Para quem pensa emigrar, esta nossa entrevistada deixa um conselho simples, mas essencial: “Façam planeamento financeiro psicológico e mental. E tenham um objectivo claro daquilo que pretender fazer em Portugal”.

Preparar para começar

Com 37 anos, Isolina Baessa é formada em Direito, pela Universidade de Santiago e ex-funcionária na Câmara Municipal de Santa Catarina. Em Dezembro de 2023, embarcou rumo a Portugal para um mestrado. Antes mesmo de iniciar os estudos, encontrou emprego no sector da restauração e rapidamente ganhou a confiança do patrão, sendo promovida a gerente de um dos restaurantes.

Isolina Baessa

“Adaptei-me rapidamente à vida de imigração, já vinha com a mente preparada”, afirma. Hoje, trabalha como auxiliar num jardim-escola em Lisboa, e sente-se plenamente integrada. “Sou tratada com respeito, nunca sofri discriminação e sinto-me em casa.”

Apesar de ainda não ter iniciado o mestrado devido a dificuldades em encontrar alojamento perto da instituição em Barcelos, Isolina mantém o foco. Fez formação como vigilante e pretende especializar-se em direcção escolar, uma área onde acredita que poderá crescer.

Segundo ela, a vida ali não é fácil, pois muitos estão desempregados, mas, para ela, a chave foi o planeamento antecipado. “Quando cheguei, o meu marido já tinha encontrado uma casa. Não pedi ajuda a familiares”.

Nem todas as histórias são de sucesso

Mas nem todas as histórias têm um fim feliz. Uma jovem cabo-verdiana que vive nos arredores de Lisboa partilhou a sua experiência, pedindo para manter o anonimato.

Chegou com esperança de uma vida melhor. Em Cabo Verde tinha um emprego, estabilidade e até alguma paz. No entanto, uma mudança deixou-a sem trabalho e com uma filha de quatro anos para sustentar. “Já entreguei currículos em todo o lado. Nunca recebo resposta. Isso mata a esperança”, desabafa.

Mas as dificuldades não são apenas económicas. O companheiro, em vez de ser apoio, tornou-se para esta nossa entrevistada numa fonte de sofrimento através de humilhações, palavras duras, um ambiente onde o medo se tornou constante. “Faço tudo em casa, mas ele chega zangado por qualquer coisa. Às vezes fujo, com medo. Já pensei até em desistir de tudo.”

Sem apoio familiar, emocional ou financeiro, a nossa entrevistada sente-se à deriva. As propostas para fazer formação existem, mas sem dinheiro e sem retaguarda, tornam-se inviáveis. “Como é que uma mãe sozinha, sem trabalho, com uma criança pequena, pode sustentar tudo sozinha?”, questiona. Apesar de tudo, não desiste. “Levanto-me todos os dias por amor à minha filha. Mesmo sem forças, luto para não desistir.”

Salto no escuro

Estas histórias e tantas outras mostram que, mais do que uma mudança geográfica, emigrar chega, às vezes, a ser um salto no escuro. O sucesso tanto depende da preparação como da sorte, ou ainda da rede de apoio e da força interior de cada um, seja homem ou mulher.

O futuro permanece incerto tanto para os que estão na fila, todos os dias, à frente da VFS Global, na cidade da Praia, como para aqueles que, em Portugal, procuram o caminho do sucesso, num ambiente cada vez mais hostil aos emigrantes. Na Praia, cada visto representa mais do que um carimbo num passaporte. Representa um sonho, uma luta e uma esperança de vida melhor. E é por isso que cidadãos como Leonardo Borges e Artemisa Furtado aguardam a sua vez de também irem experimentar a sorte no estrangeiro.

Portugal, a primeira porta de entrada para cabo-verdianos na Europa

Portugal é, de há muito, o país mais procurado pelos cabo-verdianos na sua busca da “terra longe”, para viver, trabalhar ou estudar. A partir desse país, muitos acabam por procurar outros destinos europeus, especialmente, Luxemburgo, Holanda e França.

Em 2023, segundo dos dados oficiais, Portugal emitiu mais de 8.700 vistos para cabo-verdianos, com mais de 5.000 vistos de trabalho. Na altura, este número representava um recorde na emissão de vistos pela Embaixada de Portugal na cidade da Praia.  Pelos sinais, estima-se que o número terá continuado a crescer em 2024 e 2025.

Em comparação com os quatro anos anteriores a 2023, a média mensal de vistos emitidos neste ano foi superior a 1.000, enquanto nos anos anteriores não ultrapassava os 700.

Presentemente, estima-se que mais de 50 mil cabo-verdianos estarão a residir em Portugal, sem contar com aqueles que adquiriram a nacionalidade portuguesa, constituindo 4,7 por cento da população estrangeira nesse país. Em 2023, data do último levantamento, os serviços de emigração portugueses tinham concedido 14 623 títulos de residência a cabo-verdianos. Em termos de vistos de longa duração, foram processados 12 549 pedidos, dos quais 11 702 foram aprovados.

Mais especificamente para fins laborais, tinham sido emitidos 6 208 vistos, divididos entre trabalho subordinado/sazonal e procura de emprego.

Adelise Furtado

*Estagiária

Publicado na Edição 937 do Jornal A Nação, de 14 de Agosto de 2025

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