Ainda mal a notícia das enxurradas e dos estragos na cidade do Mindelo tinha começado a circular, já começavam as iniciativas um pouco por toda a diáspora para ajudar a ilha e os desalojados. A mobilização das vontades correu célere, com flyers e publicações no facebook e no Instagram, fazendo das redes sociais o ponto de troca de informação e planeamento da operação de ajuda. São vários os contentores a ser enchidos neste momento, na Europa e nos Estados Unidos, para rumar a São Vicente.
Lisboa, Cova da Moura
Ricardo é artista e rapper, mais conhecido por Ritxa Kursha, na Cova da Moura, em Lisboa. Na hora do contacto com o A NAÇÃO disse estar precisamente naquele instante com um companheiro a arrumar vários produtos acabados de chegar de doadores. Depois de ver as imagens de São Vicente, logo no dia seguinte começou a publicar mensagens pedindo às pessoas que se juntassem e recolhessem produtos.
“As pessoas começaram a chegar com vários tipos de produtos, começamos logo a fazer as recolhas, com várias carrinhas, incluindo da Margem Sul e de vários pontos de Lisboa. Estamos sediados num largo junto à Rua de São Domingos, na Cova da Moura. As pessoas estão a trazer alimentos não perecíveis, roupas, sapatos, tudo o que têm em bom estado e que possam dar, tudo é bem vindo. Não se pode controlar as tragédias, mas podemos ajudar e é importante cada um fazer a sua parte neste momento”, conta.
Também estão em contacto com pessoas no Porto e na Praia. Alguns amigos sugeriram um ponto de entrega, em conjunto com Tibur, outro cabo-verdiano da zona que já tem experiência em campanhas do género, na Cova da Moura. “Falámos com ele e juntámo-nos para constituir um movimento só, não estamos ligados a nenhuma associação e andamos com os nossos próprios pés”, explica. Este movimento independente não teve ainda nenhum contacto com a embaixada de Cabo Verde em Portugal.
“Com o senhor Tibur, que é de São Vicente, conseguimos que nos disponibilizassem dois contentores e um armazém na zona do porto de Lisboa para e entrega dos donativos, depois de separados. Até dia 20 tem de estar tudo no contentor para o barco sair para São Vicente.”
Ritxa defende que a campanha é para continuar, para que outros barcos possam levar ainda mais donativos, como produtos de higiene e limpeza, por exemplo.
Reboleira, repercussão ‘brutal’
Também a Risa Silva, de 42 anos e natural de São Vicente, do movimento SOS Juntos por São Vicente, a ideia surgiu-lhe “naturalmente”. Conta como “ver isto a acontecer aos meus irmãos da minha ilha entristeceu-me muito e tendo em conta a distância, esta era a única forma de poder ajudar. Por isso, contactei uma amiga, Amarina Lima, de uma casa de estética, e o Black, que é promotor de eventos, vieram mais pessoas, com várias ideias, um grupo cada vez maior que abraçaram esta causa”, conta.
A repercussão, diz, foi muita, “brutal”, não estavam à espera, e diz-se orgulhosa e de “coração cheio” por ver o povo de Cabo Verde “unido de fé e pronto para ajudar os seus irmãos”. A estratégia de comunicação foi igual: partilha de flyers nas redes sociais, chegar até a outros países.
“Neste momento posso dizer-lhe que temos escassez de caixotes para colocar tudo, conseguimos um armazém na Reboleira de uma agência que costuma mandar coisas para Cabo Verde; temos também vários pontos de recolha, onde fazemos a triagem, a separação de roupas, bens alimentares, e temos carrinhas na estação de comboios da Reboleira a receber donativos. O mesmo em Sacavém, Massamá, Almada, e tivemos um desconto de 50% para o envio. nos contentores de 40 pés, de 6 mil para 3 mil euros.”
Sintra
Ainda na área da grande Lisboa, a ACAS – Associação Luso-caboverdiana de Sintra, logo reuniu a sua direcção, nos dias seguintes à tragédia, como conta Margarida Spencer, a presidente. “Conversamos todos sobre a situação em São Vicente e todos concordaram em fazer alguma coisa, até porque faz parte da filosofia da nossa associação estar com os mais vulneráveis, temos esse princípio.” Para já, aguardam o contacto da embaixada de Cabo Verde, para ver como é que será feita a coordenação dessa ajuda de Portugal para São Vicente.
Cabo Verde na Coraçom
Cabo Verde na Coraçon é uma plataforma de ajuda formada desde a época da Covid 19, para acudir às necessidades das populações, como explica a coordenadora principal, Ângela Coutinho. “Nós constituímos um sistema de intervenção rápida e global, por parte da diáspora, através da sociedade civil, como o Banco Alimentar. E como o envio de contentores é mais demorado, optámos por enviar dinheiro através de um acordo com o BCN, que não cobra as taxas normais, no receptor”, explica.
O sistema, adianta a coordenadora, permite que as pessoas necessitadas, depois de identificadas por organizações parceiras no local, possam adquirir os bens alimentares e o banco, mediante a apresentação de facturas pro-forma, faz as transferências para as casas comerciais.” Com o dinheiro recolhido na diáspora e depois enviado, através de organizações locais como a Caritas e a ONDS, adquirem produtos de primeira necessidade que armazenam para distribuição.
Holanda, campanha na televisão e voluntários

Alexandre Soares Silva
Alexandre Soares Silva, 42 anos e nascido na Holanda, também se juntou de imediato a outros companheiros, em Roterdão, à volta do Club de São Nicolau, para verem a melhor forma de ajudar São Vicente e as ilhas de São Nicolau e Santo Antão. “Demos prioridade aos medicamentos, e já fomos ao aeroporto de Amesterdão embarcar, mas o barco tem mais capacidade.”
No clube juntam-se jovens e naturais de todas as ilhas, que vivem nesta cidade portuária de Roterdão. E é aqui que vêm reunindo todos os donativos que não param de chegar de vários pontos da Holanda. “A ideia foi que era preciso fazer alguma coisa e a adesão cresceu, com recolha de donativos, sobretudo depois de a informação sobre esta iniciativa passar na televisão nacional e ganhar as redes sociais, ‘explodiu’ de maneira positiva e tem sido incrível, outras organizações quiseram ajudar, com muitos voluntários, com pessoas que nunca tinham ouvido falar de Cabo Verde a fazerem duas horas de caminho para ajudar.”
Roupa, comida enlatada, produtos de limpeza e higiene, medicamentos, tudo reunido nas instalações do clube. Para além disso, adianta, “já temos o acordo com empresa de contentores, temos já seis contentores quase cheios e se precisarmos de mais teremos mais.” O contentor é para sair na segunda-feira (dia 18), mas não há certeza ainda, visto haver muita gente e várias associações a colaborar na campanha, afirma Alexandre, funcionário da Câmara de Roterdão.
Estados Unidos, ‘chocada e triste’
Ao telefone para o A NAÇÃO, Elizabeth Almeida conta que ficou “chocada e triste” com a notícia. Mas é uma mulher feliz por poder ajudar. Faz questão de explicar que não está lá no norte, onde há muitos cabo-verdianos. Vive em Washington DC, onde também há cabo-verdianos, embora menos, e prepara-se para conduzir por mais de oito horas até Providence, na Nova Inglaterra, para ajudar na entrega dos donativos que vão seguir, este sábado, para São Vicente.
“Aqui na América é tudo muito longe, mas falaram comigo e entrei num grupo de ajuda, o lugar de entrega é na minha casa onde tenho estado a receber donativos, desde a semana passada, comprei várias caixas e junto com uma amiga estamos a separar em caixas porque o camião vem buscar na sexta-feira, temos um contentor da Atlantic Shipping que os vai receber no sábado, com a ajuda também da Cruz Vermelha.”
São roupas de criança, sopas, açúcar, farinha, arroz, feijão, como explica. “Fui a uma loja e comprei por atacado, grandes quantidades, inclusive materiais escolares, cadernos, lápis, canetas, porque a escola vai abrir, uma senhora trouxe-nos mochilas de escola novinhas.”
Com mais de 40 anos nos Estados Unidos, Elizabeth recorda como ficou chocada com as notícias da tragédia, que soube através da irmã. “Sinto muito por esta ilha onde vivi até aos 18 anos e para onde estou a preparar o meu regresso, já daqui a pouco.”
Itália unida por São Vicente

Bia Gomes
Todas as associações cabo-verdianas de Itália também se uniram na ajuda a São Vicente. Bia Gomes, da Associação Tabanka Onlus, de Roma, conta como de imediato fizeram um comunicado em italiano, português, crioulo e inglês e colocaram nas redes sociais. “Queriamos fazer uma coisa só, fizemos contacto com a OMCV (Organização da Mulher Cabo-verdiana), com a Caritas de Mindelo, Casa de Idosos da Laginha, abrimos uma conta bancária para mandar dinheiro, também procurámos informação sobre as outras pessoas do Calhau, do interior da ilha, para não ficar ninguém de fora”, diz.
A ideia é serem mais selectivos no tipo de donativos, como ela explica. “Não mandar à toa brinquedos, mas sim mais panelas, pratos, mandar dinheiro para os nossos contactos e parceiros no local, para a compra de colchões, coisas de emergência, como frigoríficos, para as pessoas poderem voltar para as suas casas, para serem autossuficientes.”
O grupo de Itália é constituído por 15 pessoas e recorda o choque com que a notícia chegou a todos, por toda a Itália e os deixou “transtornados”. Os contactos estão sendo feitos em várias cidades do país e envolve agências de transporte, como a Di Teodório Dario, Agência Campino, CTS Cabo Verde Transport Service, que mesmo de férias abriram as suas portas para também ajudarem na campanha.
Haverá também nos próximos dias um torneio de futebol, seguido de espectáculo e jantar, em Aprillia, perto de Roma, para angariação de fundos para enviar para os desalojados de São Vicente. “Uma das coisas que mais me emocionaram foi um rapaz do Haiti que encheu uma mala com donativos e andou três horas de comboio só para vir entregá-la, ele que nunca foi a Cabo Verde, mas que ficou sensibilizado pelas notícias e pelo que os amigos lhe contaram. Até me arrepiou o corpo.”
França
De Paris, França, também chegou no dia 18, no Mindelo, um avião da TACV com ajuda, em centenas de quilos de bens essenciais e produtos não perecíveis, angariados pela comunidade cabo-verdiana residente nesta cidade, para apoiar as famílias afectadas pela tempestade que varreu a cidade e a ilha no passado dia 11 de Agosto.
Uma reunião entre as associações cabo-verdianas e os vários movimentos espontâneos de solidariedade e representantes da embaixada de Cabo Verde, em Portugal, estava marcada para esta terça-feira, às 17h30, no Centro Cultural Cabo-verdiano, mas foi cancelada em cima da hora, por esta última.
Joaquim Arena
Publicado na edição 938 do Jornal A Nação, de 21 de Agosto de 2025
