Por: Germano Almeida
O grande iconoclasta francês de nome Voltaire, poeta para além de filósofo, permitiu-se compor um poema com o objetivo expresso de exprobar o Deus todo-poderoso pelo seu desnecessário, mas violento e destrutivo comportamento no terramoto que devastou Lisboa em 1755. Uma cidade florescente e rica e festiva, lamentou Voltaire, arrasada gratuitamente apenas para satisfazer a cólera insana de um Deus vingativo.
Naquele tempo ainda era comum atribuir-se à cólera divina esses excessos da Natureza e de facto nesse caso concreto não faltaram padres em diversas igrejas a justificar essas violências perversas com o ateísmo do Marques de Pombal, então primeiro-ministro de Portugal.
Hoje já não é assim! Hoje já sabemos que são homens como nós os responsáveis pela criação das condições essenciais para o surgimento dessas situações dolorosas. E é muito importante que o povo aprenda não já a consolar-se com a graça de Deus, mas a exigir responsabilidade aos governantes, a exigir que prestem contas dos seus atos, sobretudo aqueles que acabam sendo nefastos para as ilhas e seus habitantes.
Torna-se, pois, necessária a criação de uma consciência coletiva que aprenda a ser vigilante e exigente para com aqueles que, com tanta azáfama, se empenham em nos querer governar, quando afinal apenas visam governar-se.
O Governo está do lado da população, disse o primeiro-ministro. Muito bem! Posicionou-se finalmente do lado donde nunca deveria ter-se afastado, porque todos são eleitos para servir o povo e não para se servirem do povo! Com união e determinação, transformamos este desafio em força para o futuro, também disse o primeiro-ministro.
Mas este não é um desafio, senhor primeiro-ministro, está longe de ser alguma coisa parecida com um simples desafio. Desafio podemos chamar ao jogo de futebol que o presidente da República foi assistir na Reboleira entre Estrela-de-Amadora e o Benfica. Nós aqui estamos na Tapadinha, longe das alegrias de um desafio; estamos diante de uma tragédia, estamos a viver uma tragédia que inesperada e impiedosamente atingiu esta ilha que aos poucos foi ficando cada vez menos preparada para a receber e suportar.
Ora essa cada vez maior menos preparação para a tragédia, sabemos que tem uma razão: a ganância! E tem também responsáveis. Governantes responsáveis que se fizeram eleger pela população a troco de promessas mil que na realidade nunca tiveram intenção de cumprir.
Essa tragédia de uma noite está a pôr a nu a imensidão da miséria que os bairros periféricos escondem. Nos dias da pandemia, quando a palavra d’ordem era fechar-se em casa, permiti-me chamar a atenção para o facto evidente de que se estava a exigir de mais a este povo, a vida em S. Vicente decorre na rua porque é na rua que ele angaria o pão de cada dia. E a tempestade do dia 11 de agosto veio trazer para a rua a imensa miséria que se escondia por esses subúrbios afora, a indignidade e indigência em que grande parte do nosso povo ainda vive, 50 anos após a independência.
Toda a gente está a pedir um djunta mon; ninguém parece lembrar-se da necessidade de um djunta cabeça para se pensar estas ilhas. Os claridosos juntaram-se nos anos trinta do século passado para pensar Cabo Verde; parece estar na hora, quase cem anos depois, de de novo nos juntarmos para pensar Cabo Verde.
Estamos a viver numa sociedade enfeudada aos partidos políticos. A sociedade civil cabo-verdiana precisa urgente de despertar desse amorfismo que acaba caucionando todos os desmandos e má governação de quem está no poder.
Gritar e espernear neste momento “somos todos S. Vicente” e acompanhar a comoção geral que atinge este povo numa solidariedade que quem conhece a história das ilhas não estranhará, não pode fazer-nos esquecer a urgente necessidade de exigir contas àqueles que ativa ou passivamente estão na origem desse terrível desastre que praticamente destruiu uma cidade em cujas fraldas se deixou acumular os maiores desmandos a nível urbanístico.
Ao longo dos anos fui lendo inúmeras chamadas de atenção de munícipes atentos protestando contra o desrespeito dos direitos da natureza que verificavam na construção urbana. Inutilmente! Agora a natureza mostrou quem manda e da forma mais cruel.
Porém, a sina de Cabo Verde (si tchuba ca bem, morrê di sede/ si tchuba bem, morrê fogóde) tem que deixar de ser uma fatalidade 50 anos após a independência nacional. A independência não pode ter outro objetivo que não seja criar na nossa terra condições de vida digna para todos. Quando Cabral exortava a pequena burguesia nacional a suicidar-se como classe para se ressuscitar como trabalhador revolucionário, ele sabia como esse sacrifício seria necessário se quiséssemos construir um país de direitos iguais. Mas infelizmente essa abnegação durou os dez primeiros anos da independência nacional. Depois disso, como aliás já tinha esconjurado Cabral numa inútil tentativa de afastar o mal, paulatinamente, a maior parte da nossa elite no poder ou próximo dele começou a “deixar agir livremente as suas tendências naturais de emburguesamento, permitindo o desenvolvimento duma burguesia burocrática… transformar-se em pseudo-burguesia nacional, isto é, negar a revolução e enfeudar-se necessariamente ao capitalismo imperialista. Ora isso corresponde à situação neocolonial, quer dizer, à traição dos objectivos da libertação nacional”.
Cabral não poderia ter sido mais certeiro. E hoje temos a governar o país um grupo transversal às forças políticas, que está no poder seja qual for o partido a ganhar as eleições. E daí nunca ter havido um único processo no tribunal contra “os graúdos” do poder, pese embora as grandes e graves acusações que se vão acumulando ao longo dos mandatos eleitorais. Com efeito às cumplicidades partidárias, juntam-se as cumplicidades familiares, a que se acrescentam as amizades dos tempos do liceu, da faculdade e o resto. É por isso que desde a independência até hoje não conheço um único processo movido contra fosse quem fosse de nenhum dos partidos que se têm revezado no poder. Esperemos, pois, que a comoção pela justiça que neste momento atravessa a sociedade cabo-verdiana não seja fogo de palha.
