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O regresso ao mito do hub no Sal: entre a ilusão e a realidade de 2025

Por: Américo Medina*

Em 2017 escrevi sobre a euforia em torno da ideia de criar um hub aéreo na ilha do Sal. Era um tempo em que, entre slogans fáceis e diagnósticos apressados, se confundia desejo com realidade, ambição com rigor técnico. O resultado foi previsível: promessas sem base operacional, expectativas inflacionadas e uma sucessão de frustrações que marcaram negativamente o debate sobre a aviação em Cabo Verde. Hoje, oito anos depois, há quem procure reavivar esse “delírio” como se nada tivesse acontecido. É, portanto, essencial regressar ao tema, com serenidade e profundidade, à luz da evolução global da indústria e das especificidades da região.

O Que Está Em Causa Quando Falamos  de Hub? O modelo hub-and-spoke nasceu da desregulação americana de 1978 e consolidou-se na Europa nos anos 1990. A lógica era simples: concentrar tráfego num aeroporto central, multiplicar conexões e alcançar economias de escala que sustentassem  margens mais robustas. Os grandes hubs globais — Frankfurt, Heathrow, Dubai, Atlanta — são fruto de massa crítica local (tráfego origem-destino elevado), de mercados domésticos expressivos e de uma organização operacional que garante ligações rápidas (MCT de 30–45 minutos), pontualidade e reputação.

Mas o modelo tem fragilidades intrínsecas:

– aumenta os tempos totais de viagem em comparação com rotas ponto-a-ponto;

– expõe todo o sistema a disrupções em cascata (meteorologia, greves, incidentes técnicos);

– exige infraestruturas de grande escala (pistas redundantes, terminais desenhados para fluxos de transferência, sistemas avançados de bagagens e fronteira);

– depende fortemente de tráfego de transferência, de baixo yield, arriscando saturar capacidade sem retorno económico local.

Na prática, só alguns centros mundiais conseguem reunir os pressupostos técnicos e de mercado para um hub competitivo. Pequenos ou médios hubs, sobretudo em países sem mercado interno relevante, enfrentam barreiras quase intransponíveis.

A geografia da aviação em 2025

Se em 2017 o debate ainda se fazia entre hub e ponto-a-ponto, em 2025 a realidade é muito mais híbrida. A indústria ajustou-se a choques sucessivos (pandemia, guerra, crises regulatórias) e redefine a sua conectividade em três modelos que coexistem e se interligam:

1. Hub-and-spoke: continua essencial nas redes intercontinentais, mas reinventou-se após os colapsos operacionais de 2022–2024. Hoje, os hubs mais resilientes operam com bancos de conexões mais dispersos, horários flexíveis (“rolling”), buffers táticos e integração digital sem fricção. Só sobrevivem aqueles que combinam tráfego O&D expressivo, excelência operacional e alianças estratégicas.

2. Low-cost ponto-a-ponto: em 2024 já representavam 34% do tráfego europeu. Sustentadas em custos unitários muito baixos, frota intensivamente utilizada e distribuição digital direta, estas companhias ganharam um novo vetor com a chegada do Airbus A321XLR. Pela primeira vez, pares de cidades transatlânticos “finos” podem ser operados com narrowbodies, minando a dependência de hubs tradicionais.

3. Modelos híbridos: companhias que misturam práticas de FSC (full service carriers) com estruturas de custo próximas das LCC, explorando receitas acessórias (bagagem, lugares premium, retalho digital) que hoje são pilar da rentabilidade. É um espaço em rápida expansão, sobretudo em mercados regionais e rotas secundárias.

A estas dinâmicas somam-se dois vetores estruturantes:
– Agenda climática: entrou em vigor em 2025 o mandato europeu de 2% de SAF, com ramp-up até 70% em 2050; o EU ETS elimina alocações gratuitas a partir de 2026; e o CORSIA será obrigatório em 2027. A sustentabilidade deixou de ser narrativa e tornou-se requisito regulatório e de mercado.
– Digitalização e biometria: a viagem sem “fricção” tornou-se realidade em vários hubs. Identidade digital e processos automatizados de embarque reduzem tempos, custos e erros, tornando-se fator competitivo decisivo.

E Cabo Verde neste Tabuleiro?
Cabo Verde não dispõe da escala necessária para sustentar um hub competitivo: o mercado doméstico é reduzido; o tráfego O&D concentra-se em fluxos turísticos para Sal e Boa Vista; o país não tem hinterland terrestre, sem corredores logísticos nem densidade populacional próxima. Repetimos: não  basta estar “no meio das rotas”, é preciso estar ligado aos fluxos de passageiros e carga, e isso o Sal não está. Apostar num hub aéreo sem certos pressupostos é alimentar uma ilusão dispendiosa.

O verdadeiro desafio do arquipélago é outro: garantir conectividade previsível, estável e sustentável para a sua economia insular, através de soluções ajustadas à sua realidade: PSO (Obrigações de Serviço Público) bem desenhados; com os ATR 72-600 assegurando frequências inter-ilhas regulares, sincronizadas com chegadas e partidas internacionais; Incentivos aeroportuários seletivos, focados em rotas estratégicas que liguem Cabo Verde a mercados turísticos relevantes e a centros regionais de saúde, comércio e mobilidade; Integração digital e operacional, criando uma experiência fluida para quem transita, mesmo sem hub, valorizando o passageiro O&D; Abertura a narrowbodies de longo alcance, como o A321XLR, que podem ligar Cabo Verde diretamente a cidades europeias e americanas, reduzindo dependência de transferências.

Entre mito e estratégia 

A insistência em reeditar o discurso do hub no Sal ignora tanto a experiência falhada de 2017 como a realidade objetiva de 2025, não basta querer, não se decreta: um hub exige escala, infraestruturas e tráfego que Cabo Verde não tem nem terá nos próximos tempos – O risco é desviar recursos públicos escassos para um projeto condenado à irrelevância!

O caminho realista não é competir com Lisboa, Dakar ou Casablanca em conectividade intercontinental, mas sim consolidar Cabo Verde como destino turístico de qualidade e plataforma regional de conectividade adaptada à sua escala, minhas convicções! Isso implica disciplina regulatória, gestão profissional, parcerias sólidas e liderança política responsável.
O hub-and-spoke foi, em tempos, a grande promessa da aviação global, hoje é apenas uma peça de um puzzle mais complexo, em que low-cost, híbridas, sustentabilidade e digitalização moldam o futuro. Cabo Verde deve aprender com os erros de 2017: não precisa de um hub, mas de uma política de conectividade inteligente, transparente e alinhada com as suas reais condições de mercado.

Insistir em narrativas fáceis pode ser confortável, mas a aviação não perdoa improviso e não é para quem quer! O que se exige é rigor técnico, visão estratégica e coragem para resistir às tentações do mito. Só assim Cabo Verde poderá transformar a sua localização geográfica em vantagem real, em vez de alimentar ilusões recorrentes e sem definição ( ainda!) que tipologia de hub, horizonte temporal e operador de referência, as propostas sabem a vazio.

*Consultor em Aerospace

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