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O Futuro Azul de Cabo Verde: entre a visão política, o cinema, a literatura e a urgência ecológica

Por: Karina de Fátima Gomes*

Eu nasci em uma cidade no interior do estado de São Paulo (Brasil), chamada Pirajuí. Minha cidade natal fica a aproximadamente 550 km do mar. A primeira vez que vi o oceano eu já tinha 23 anos e era professora formada. Senti fascinação, encantamento, uma mística difícil de traduzir em palavras. Desde então, passei a fazer do mar um destino anual: comprava uma excursão, um pacote de viagem e passava uma semana ou dez dias diante dele, observando o vai e vem das ondas, pulando ondinhas, deixando que aquele movimento se tornasse também o meu. Muitos anos se passaram até que eu decidisse viver perto do mar, e muitos outros até chegar a Cabo Verde. Mas a temática marítima (os filmes que assisti, os livros que li, os museus e oceanários que visitei) me ensinou muito sobre o oceano e, principalmente, me deu uma consciência planetária: cada um de nós tem responsabilidade em preservá-lo, mesmo alguém que nasce e cresce no interior de São Paulo, a centenas de quilômetros da costa.

O Tratado do Alto Mar: Cabo Verde como Nação Azul

Em 2025, Cabo Verde deu um passo decisivo no cenário internacional ao ratificar o Tratado do Alto Mar, após aprovação parlamentar, consolidando sua posição como uma “Nação Azul”. Essa adesão reforça o compromisso do país com a proteção dos oceanos e com o cumprimento da meta global de proteger pelo menos 30% das águas marinhas até 2030.

Mas afinal, o que é o Tratado do Alto Mar? Trata-se do primeiro acordo global focado exclusivamente na conservação e utilização sustentável da biodiversidade marinha em águas internacionais, que representam quase metade da superfície da Terra. É, portanto, um marco histórico para a governança dos oceanos, buscando equilibrar a proteção dos recursos marinhos com sua utilização responsável.

Entre os objetivos centrais do Tratado estão: Permitir a criação de grandes zonas marinhas protegidas no alto-mar; Promover a partilha justa dos recursos genéticos marinhos, democratizando o acesso e evitando monopólios; Exigir avaliações de impacto ambiental para todas as atividades desenvolvidas em águas internacionais e desenvolver capacidades técnicas e transferência de tecnologia marinha, especialmente para países em desenvolvimento.

Cabo Verde e o Tratado

A aprovação pelo Parlamento e a ratificação pelo Presidente da República são vistas como um passo fundamental para a entrada em vigor do acordo e para a afirmação do compromisso de Cabo Verde com a diplomacia ambiental. A relevância desse movimento é ainda maior para um país arquipélago cuja Zona Econômica Exclusiva (ZEE) é muito maior do que o território terrestre. Ao aderir, Cabo Verde projeta sua voz no cenário internacional, defendendo políticas que impactam diretamente sua sobrevivência ecológica e econômica.

Próximos passos

O Tratado do Alto Mar ainda precisa da ratificação de um número suficiente de países para se tornar lei internacional. Quando isso ocorrer, Cabo Verde poderá exercer um papel ativo na definição das políticas globais para a biodiversidade marinha, reforçando a ideia de que o arquipélago é não apenas um espaço de vulnerabilidade climática, mas também um ator de protagonismo na governança dos oceanos. Até a data da redação deste artigo de opinião, 54 países já haviam ratificado o Tratado (Fonte: High Seas Alliance).

O mar no espelho do cinema

Não é de hoje que o cinema nos alerta para a urgência de preservar os oceanos. Documentários como The Cove – A Baía da Vergonha (2009), dirigido por Louie Psihoyos, revelam práticas brutais de caça a golfinhos no Japão, expondo como interesses econômicos imediatos podem devastar ecossistemas inteiros. Em Busca dos Corais (Chasing Coral, 2017), de Jeff Orlowski, utiliza a potência da imagem para mostrar o branqueamento dos recifes de coral: fenômeno ligado ao aquecimento global e que ameaça a base de inúmeras cadeias alimentares marinhas. Um Oceano de Plástico(A Plastic Ocean, 2016), dirigido por Craig Leeson, denuncia a invasão de resíduos plásticos e seus impactos devastadores na vida marinha. Já Mission Blue (2014), centrado na trajetória da oceanógrafa Sylvia Earle, propõe a criação de hope spots (pontos de esperança), áreas marinhas protegidas que poderiam garantir a resiliência dos oceanos diante da degradação.

Esses filmes compartilham uma mensagem: não há tempo a perder. A destruição do oceano é também destruição da vida humana. Ao citar um “futuro azul” para Cabo Verde, José Maria Neves coloca o arquipélago dentro desse debate global (um gesto político que, no entanto, precisa ser acompanhado de medidas concretas). E quando olhamos para as tragédias recentes: as enchentes em Porto Alegre, no Brasil, em maio de 2024, as inundações em Valência, Espanha, em outubro de 2024, o temporal devastador em São Vicente, Cabo Verde, em agosto de 2025, percebemos que não falamos de um futuro distante, mas de um presente que já nos cobra respostas urgentes.

O mar como herança literária

A literatura cabo-verdiana já havia antecipado, de maneira simbólica e estética, a centralidade do oceano em nossa experiência histórica. Em Chiquinho (1947), Baltasar Lopes retrata o mar como horizonte de partida, espaço de risco e esperança para o jovem protagonista que migra em busca de melhores condições de vida. Em Flagelados do Vento Leste (1960), de Manuel Lopes, embora o eixo narrativo seja a seca, é novamente o mar que se apresenta como possibilidade de fuga diante da terra árida e da fome. E em poetas como Corsino Fortes, o mar é metáfora da própria identidade nacional, espaço de travessia e de diálogo entre continentes.

No Brasil, a literatura também nos ajuda a pensar essa urgência ecológica. Ailton Krenak, em Ideias para adiar o fim do mundo (2019), denuncia o rompimento entre ser humano e natureza como raiz da crise civilizatória. Embora não fale diretamente dos oceanos, sua visão de mundo indígena (que entende a Terra como um organismo vivo) é essencial para compreendermos que o mar não é recurso, mas vida. Nessa mesma direção, Amyr Klink, em Cem dias entre céu e mar (1985), relata sua travessia solitária a remo pelo Atlântico Sul, experiência que revela não apenas coragem e resistência, mas sobretudo um profundo respeito pelo oceano, tratado como força vital e companheiro inseparável. Na mesma linha de sensibilização poética, A Menina do Mar (1958), da portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, oferece uma narrativa em que a amizade entre uma criança e uma menina marinha desperta reflexões sobre a beleza e a vulnerabilidade do oceano, antecipando debates contemporâneos sobre preservação ambiental.

Essa herança cultural se projeta ainda em manifestações locais, como o projeto que pintou em fachadas de casas de Cabo Verde o percurso do navegador francês Jacques Cousteau: uma homenagem que conecta a memória da exploração oceânica mundial ao cotidiano das comunidades cabo-verdianas. Esses murais não apenas celebram a passagem de Cousteau pelo arquipélago, mas reafirmam que o oceano é parte do nosso patrimônio cultural, visual e simbólico.

A dimensão política do “azul”

A visão presidencial de um “futuro azul” precisa se materializar em políticas públicas robustas:

Educação oceânica inserida nos currículos, formando cidadãos conscientes de que o lixo descartado em terra chega inevitavelmente ao mar.

Proteção das comunidades costeiras, valorizando pescadores e integrando seus saberes tradicionais às práticas de gestão sustentável.

Cooperação internacional, para que Cabo Verde não enfrente sozinho os desafios do aquecimento global, da sobrepesca e da poluição marinha.

Produção cultural engajada, incentivando cineastas, escritores e artistas a registrarem, em sua própria voz, os impactos das mudanças climáticas sobre o arquipélago.

Entre a poesia e a responsabilidade

A frase “o futuro de Cabo Verde é azul” pode soar como poesia: e de fato é. Mas, como nos lembram tanto o cinema quanto a literatura, a poesia precisa se transformar em prática. As imagens de corais morrendo em Chasing Coral, as palavras de Krenak clamando por uma reconexão com a Terra, os personagens de Baltasar Lopes e Manuel Lopes partindo pela via do mar, todos apontam para uma mesma direção: o oceano é destino e herança, mas também desafio.

Essa é a conexão global que nos cabe assumir: se alguém que nasceu no interior de São Paulo, a centenas de quilômetros da costa, pode aprender a amar e defender o mar, então todos podemos. O azul, em Cabo Verde, não pode ser apenas símbolo. Precisa ser compromisso: compromisso de governo, de comunidade e de cada indivíduo que compreende que cuidar do oceano é cuidar da própria vida. O cinema nos alerta para os riscos da inércia; a literatura nos devolve a profundidade simbólica desse vínculo; e a política precisa agir para que o discurso não se esgote na retórica.

Assim, o futuro azul de Cabo Verde não é apenas um slogan, mas uma escolha civilizatória. Ou escolhemos viver em harmonia com o oceano que nos define, ou seremos engolidos por ele: não em ondas poéticas, mas em marés de destruição, como vimos em São Vicente em 11 de agosto de 2025, em Porto Alegre (Brasil) em maio de 2024, ou em Valência (Espanha) em outubro de 2024. O desafio está posto: transformar o azul em horizonte de esperança.

*MINIBIO: Karina de Fátima Gomes é doutora em Letras (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e Universidade de Évora), Leitora do Instituto Guimarães Rosa em Praia e professora na Universidade de Cabo Verde. Pesquisa literatura brasileira e literaturas africanas e coordena o Grupo de Pesquisa em Literatura Infantil e Juvenil de Cabo Verde.

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