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Babilónia: considerações de um passado-futuro

Por: Hugo Lopes

Entre quezílias e desejos, a «Babilónia» emerge no debate público. Ainda que seja uma aparência lateral face aos assuntos mais prementes do país, não deixa de ser um bom momento para aflorar o debate em torno de patrimónios a partir deste marco incontornável da arquitetura moderna cabo-verdiana. 

Entre as várias dimensões que esta discussão poderia suscitar, pretendo apenas salientar duas vertentes: por um lado, o seu “valor histórico” no campo da arquitetura habitacional pós-colonial, por outro, a relevância que esta obra na Prainha tem no conjunto da vasta produção arquitetónica nacional do arquiteto Pedro Gregório.

Após a independência, a Prainha foi eleita pelo Estado como uma das zonas onde seria possível começar “imediatamente” a construção de habitações. Até ao final de 1979, era previsto serem construídas 107 habitações multifamiliares na Achada, 47 habitações unifamiliares “em banda” na Terra Branca, e 22 habitações unifamiliares e habitações de alto padrão (com controlo e imposição das normas de ocupação de cada terreno particular) na Prainha.

Das cento e oitenta habitações que o primeiro governo se comprometeu a construir até 1979, a grande maioria seria projetada por Pedro Gregório. Subjacente a este programa,  promulgavam-se políticas de cariz assistencialista como a alocação de mão de obra na construção cívil para empregar e alfabetizar «as massas» que chegavam do interior rural. Na ótica do partido, PAIGC, apenas um «vasto programa de construção poder[ia] satisfazer as necessidades» de urbanização e desenvolvimento da cidade e do país.

Desde o final da década de 1950 que a Prainha vinha sendo uma localização muito cobiçada para ocupação urbana pelas mais variadas entidades. A partir de 1976, além da Cadeia, da Pousada, do Seminário, e de outros edifícios – entre os quais as várias moradias particulares projetadas por Gregório através do seu escritório Trópico – a Prainha ia sendo pontilhada por moradias do Estado destinadas a técnicos (locais e estrangeiros) contratados para auxiliar no planeamento e reconstrução do arquipélago. 

De entre os vários projetos na Prainha da autoria de Pedro Gregório podemos mencionar as moradias cúbicas para uma delegação de cooperação dos EUA, assim como um bloco de seis apartamentos, cuja construção se inicia em Dezembro de 1976, para cooperantes (inclusive arquitetos e urbanistas jugoslavos e portugueses), técnicos (da FAO e UNESCO) e ministros do primeiro governo.

O lote onde seria erguida a «Babilônia» já tinha sido alvo de discussão pelo urbanista cooperante holandês Hugo Diddens em 1977. Se no estudo que Diddens apresenta ao Secretariado Administrativo da Praia já se nota uma cuidada implantação das casas a serem construídas e executadas pela EMEC «a um preço justo para a venda do projeto», seria apenas dois anos depois que o projeto viria a ganhar forma sobre a encosta. 

No verão de 1979, Pedro Gregório desenvolveu o conjunto habitacional para as “22 moradias na encosta da Prainha” (como consta no arquivo) mais tarde designada pela população praiense como «Babilónia».

Ao analisarmos os projetos habitacionais que o Ministério das Obras Públicas (MOP) realiza entre 1975 e 1980, notamos uma clara preferência por uma implantação de projetos habitacionais em terrenos planos. Perante a grande necessidade de construir rápido e economicamente, um dos grandes desafios que se impôs, devido à infraestruturação necessária nos interstícios dos montes e achadas, foi a ocupação das encostas com construção de habitação promovida pelo Estado. Notemos como poucos anos antes, no final da década de 1960, a Direção dos Serviços de Urbanismo e Habitação (DSUH/DGOPC), baseada na metrópole, já começava a levar em conta a necessidade de criar tipologias que se adaptassem a terrenos nas encostas. A título de exemplo, podemos mencionar o esboceto de António Seabra onde é proposto um plano para 100 habitações tipo para zonas inclinadas entre 20 e 40%, no Mindelo.

No caso da «Babilônia», a sua função era dupla. Por um lado, dar continuidade à expansão do programa habitacional nas áreas da cidade delineadas pelo “Grande Plano de Desenvolvimento Urbano” da cidade; por outro, possibilitar a conexão e acesso entre a zona baixa (Prainha) e alta da cidade (Achada de St. º António). Aliás, Pedro Gregório esteve envolvido desde os inícios da década de 1960 na urbanização da Prainha, assim como realizou um estudo urbanístico para a Achada de St. º António após o 25 de Abril. 

Vale a pena levar em consideração que, um ano antes de projetar a «Babilónia», Pedro Gregório tinha apresentado um relatório ao MOP após participar no “Simpósio sobre barateamento da construção habitacional” em Salvador da Bahia. Desde a autoconstrução em solo estruturado e a criação de terrenos dentro da cidade onde se pudesse construir isento do prejuízo de especulação, à utilização de materiais naturais locais complementados com a prefabricação ligeira e pesada, as propostas que Gregório elabora no relatório de 1978 ainda se mantêm pertinentes para os dias de hoje. Medidas estas que, à data, possibilitariam a criação de empregos nos locais de habitação de origem e evitaria o êxodo rural em relação às cidades aumentando a capacidade aquisitiva dos habitantes.

O projeto da «Babilónia» pode ser visto como a consumação tanto destas ideias, como de todas a experiências acumuladas das obras habitacionais que Pedro Gregório desenvolve desde 1959 e que têm sido objeto de estudo. Por estas e outras razões, constitui-se como um dos marcos da urbanidade cabo-verdiana que melhor simboliza as vontades, os sonhos e as frustrações de construir habitação num país recém-independente à procura da sua identidade política e nacional. A polissemia da denominação popular não é irrelevante, aludindo tanto à “cidade ancestral” materializada na pedra (a que Pedro Gregório tanto faz referência nos seus poemas), como um lugar de uma cidade grande e confusa de tempos remotos.

Entre a idealização estatal e a projeção endógena e moderna de um arquiteto local – o primeiro a atuar em Cabo Verde – a Babilónia incorpora a complexidade da experiência política pós-colonial nos primeiros anos de independência. Um período cuja produção urbanística e arquitetónica é repleta de motivações e visões contrastantes dos técnicos e cooperantes que imaginaram o futuro das cidades cabo-verdianas; e que merece ser estudado e problematizado. 

Não considerar este passado-presente da «Babilônia» em qualquer decisão que for tomada relativamente ao seu presente-futuro, seria desconsiderar uma das matérias fundamentais que constituiu a essência da história recente da cidade da Praia. Herdando as vicissitudes do passado, a «Babilónia» constitui-se como uma lição de futuro para a arquitetura cabo-verdiana.

 

22 Setembro 2025

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