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Educação

Manual de LCC: Norma pandialetal não se aplica aos alunos, diz conceptora

A norma pandialetal utilizada no Manual de Língua e Cultura Cabo-Verdiana, do 10º ano, foi pensada apenas para a escrita das conceptoras. Ela não é ensinada aos alunos, que devem escrever e ler na sua variedade nativa ou outra da sua escolha. Eliane Semedo, uma das conceptoras, refuta a ideia de matar variedades e reforça que a escrita não altera a língua.

O Manual de Língua e Cultura Cabo-verdiana (LCC), do 10o ano, continua a gerar discussão, tendo o Ministério da Educação mandado suspender o uso desse instrumento, na sequência de um parecer do Ministério Público, face a um pedido de embargo do poeta e cidadão José Luiz Tavares. Várias são as vozes que se têm levantado contra a utilização do manual, bem como a outros aspectos relacionados com a língua cabo-verdiana. 

Para além da legalidade da publicação, questiona-se a criação de uma normal pandialetal, que resulta da unificação das variantes, assim como a alegada utilização de “regras avessas ao ALUPEC”, relacionadas, por exemplo, à acentuação.

Linguistas e interessados consideram que a referida norma, embora procure representar todas as variantes, acaba por criar uma nova variante, “artificiosa”, como chegou a definir o ensaísta José Luís Hopffer Almada, na qual predominam características das variantes de Barlavento e se “mata” variantes de ilhas como Santiago, Fogo e Brava. 

Eliane Semedo, linguista e investigadora

Para Eliane Semedo, linguista e investigadora, ligada à concepção do manual, por isto co-autora do referido manual, o que se procurou foi uma abordagem social da língua, em que não há hierarquização das variedades em função do número de falantes.

“Foi numa perspectiva didáctica, pedagógica e social da linguagem que entendemos que não poderíamos, no manual, hierarquizar. Nós não temos uma escrita padronizada, temos apenas um alfabeto, que é a primeira fase para a padronização. Ou seja, não temos a continuidade dessa padronização, que inclui a escrita e depois a padronização da língua, que já inclui regras de concordância, de colocação pronominal, etc.”, explica. 

Para Semedo, também não se pode dizer que a língua não esteja em processo de padronização, se o próprio decreto que institui o alfabeto oficial da Língua Cabo-verdiana diz que o ALUPEC (Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-Verdiano) é o primeiro passo para a padronização. 

“A partir daí, e nessa perspectiva social, pensamos que para a voz das conceptoras, não iríamos usar uma única variedade. Fomos buscar os traços comuns e tentamos, a partir dos usos das variedades, selecionar esses traços com a preocupação de que as palavras resultassem em palavras que são praticadas por alguma variedade”, esclarece, a propósito da controvérsia instalada.

Mais, apenas um traço das variedades de Barlavento foi seleccionado para esta proposta de escrita, ou seja, a não representação gráfica do “i” e “u” átono em final de palavras, porque este fenómeno ocorre em seis variedades da língua (Santo Antão, São Vicente, São Nicolau, Boa Vista, Sal e Maio). Todas as outras características, segundo explica, são das variedades de Sotavento: nasalização (on não ãu), não metafonia das vogais (gat não got), manutenção das vogais pretónicas (buska não bska).

Norma não se aplica aos alunos 

Essa norma, entretanto, segundo a nossa entrevistada, não é ensinada aos alunos, que continuam a ler e a escrever na sua própria variante, ou em outra variante específica da sua escolha, sempre utilizando o ALUPEC, assim como foi utilizado na escrita do manual, com duas excepções.

A primeira foi a não utilização do “e” mudo nas variedades de Barlavento, “que é apenas aconselhável no decreto e não obrigatório”. “O decreto diz, que o seu uso é para ‘evitar encontros ásperos de consoantes’, mas, nós entendemos que considerar a estrutura da sílaba de uma outra variedade como áspera não é uma atitude linguística positiva”, explica, acreditando que a presença do ‘e’ mudo traz confusão, porque em algumas palavras é pronunciado e nem outras não.

Uma outra concepção feita na escrita do manual é relativa à acentuação. “No decreto de 2009 a acentuação está nos pontos que devem ser melhor estudados e revistos. Mas, volto a reforçar, o aluno vai aprender todas as regras do ALUPEC”, garante.

Assim, para Eliane Semedo, o que resulta no manual não pode ser considerado uma nova variedade, pois, “não há palavras lá que não sejam praticadas por alguma variedade”.

A língua não se altera na escrita

Mais do que isso, Eliane Semedo defende, somente a forma de escrita não é o suficiente para alterar uma língua. “Quem é linguista sabe que variedade surge na oralidade, na prática, não existe variedade de língua criada. A escrita não altera a língua. É mentira que a proposta vai matar as variedades. Se matasse, os açorianos não falavam diferente de outros portugueses, os brasileiros falavam também tudo igual”, exemplifica.

O maior objectivo do manual, diz, é promover a intercomunicação, para que alunos de qualquer ilha consigam comunicar-se entre si, produzir textos e, se no futuro se tornarem professores, acolher alunos de qualquer variedade. 

Por isso, considera que a suspensão do manual é “mais uma atitude de desvalorização da língua e um enorme prejuízo para os professores e para os alunos”, dando a entender ser contra a posição adoptada pelo Ministério da Educação. 

Natalina Andrade 

Publicado na Edição 943 do Jornal A Nação, de 25 de Setembro de 2025

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