Por: Isabella Bretz
Chegamos de forma inusitada: recebidos pela chuva. De tudo o que imaginei levar na mala, o guarda-chuva não estava na lista. As águas não deram trégua o dia todo e também não amenizaram a temperatura. O calor já transbordava pela pele. Mas esse calor não vinha só de fora; vinha também do coração, que estava muito feliz em voltar.
Já nos sentíamos em casa, afinal era a terceira visita à Cidade da Praia. A primeira foi em 2017. Eu tinha acabado de lançar um álbum chamado “Canções Para Abreviar Distâncias: uma viagem pela língua portuguesa”. Selecionei 8 poemas, cada um de um escritor lusófono vivo, que foram transformados em canções. De Cabo Verde, escolhi “Ai, se um dia…”, de Vera Duarte.
A força daquelas palavras me impactou. Era a força de um povo que precisa nadar contra a corrente o tempo todo. Gostei especialmente de como o poema é dividido em duas partes. Primeiro há um lamento sobre os obstáculos que têm que ser vencidos diariamente, como a seca e a fome. Em seguida, uma nova abordagem, concreta, firme, mostrando que a força para superá-los vem das pessoas. Nós somos a chuva que cai para fazer brotar da terra o que precisamos. E digo “nós” porque sou brasileira, e há tantos desafios comuns entre Brasil e Cabo Verde.
O álbum havia sido lançado e é claro que, com ele, eu queria conhecer todos os países de língua portuguesa. Eu já conhecia o Brasil, onde nasci; Portugal, onde vivo; e Moçambique, onde realizei um trabalho voluntário em 2011. Por algum motivo, veio uma grande vontade de ir a Cabo Verde primeiro. Escrevi para o Centro Cultural Brasil – Cabo Verde (atual Instituto Guimarães Rosa) e, felizmente, quem estava do outro lado da tela era Marilene Pereira. Trocamos mensagens, ela gostou muito do projeto e depois de muito trabalho e articulação, nossa ida ao país foi viabilizada por um edital cultural. A ligação com a Marilene não veio somente por ela trabalhar com cultura na Praia, nem por ser minha conterrânea de Belo Horizonte. Ao longo desses anos, tornou-se uma querida e preciosa amiga.
O álbum foi feito por mim, pelo Rodrigo Lana e Matheus Félix, que são músicos também de Belo Horizonte. Assim, fomos os três a Cabo Verde em 2017 para uma apresentação na Morabeza – Festa do Livro de Cabo Verde. Foi uma experiência riquíssima para nós. Um dos momentos mais marcantes para mim foi visitar o Campo de Concentração do Tarrafal. Eu não imaginava a dimensão da história e da dor que aquele lugar carregava. Fiquei profundamente comovida.
Voltamos em 2018, também a convite da Embaixada do Brasil, para realizar um show desse mesmo projeto no contexto de um encontro do Instituto Internacional da Língua Protuguesa – IILP. Com um pouco mais de tempo, conhecemos mais da cidade e experimentei pela primeira vez meu prato cabo-verdiano preferido até o momento: a cachupa guisada! Uma delícia, não é? Lembra bastante o nosso feijão tropeiro brasileiro.
Os anos passaram, o projeto cresceu e ganhou outros braços, como o acadêmico. Fui lançando outros trabalhos também, mas sempre “abreviando as distâncias na lusofonia”. Por muitas vezes tentei regressar, mas sempre havia algum impedimento. Finalmente, com o apoio da Fundação GDA, Rodrigo e eu pudemos regressar, 7 anos depois. Dessa vez, apresentamos músicas do nosso álbum “Cabeça Fora D’Água”, além de outras de discos anteriores e influências que marcaram nossas vidas. Mais uma vez, contamos com o grande apoio do Instituto Guimarães Rosa e da Embaixada do Brasil, além de termos sido muito bem acolhidos no auditório do Centro Cultural Português. Uma cooperação entre Portugal, Cabo Verde e Brasil, países tão importantes para mim, fez com que fosse possível novamente.
Voltei para casa com a mala muito mais cheia. Trouxe as lembranças de um show com a casa cheia de um público caloroso, empolgado e participativo. Guardei a alegria de ter encontrado novamente Vera Duarte, mulher que admiro por uma centena de motivos e que tanto significa nesse país. Vieram as fotos de um passeio calmo pela Cidade Velha, ouvindo todas as histórias contadas pela Marilene. O cheirinho da cachupa do sábado de manhã. A sensação de uma chuva cabo-verdiana no corpo. A certeza de que a verdadeira diplomacia cultural não é entre países, mas entre os povos. Ela é a genuína amizade que se forma além fronteiras, além mar. Trouxe a profundidade de viver em língua portuguesa. E a vontade de aprender crioulo, para, da próxima vez, poder dizer: nha keridus amigus, N’bô torna
