Para o Juízo Central Cívil e Criminal de Angra do Heroísmo, nos Açores, a morte do cabo-verdiano Ademir Moreno, de 49 anos, calceteiro e a residir nesse arquipélago há alguns anos, não foi motivada por ódio racial, como vinha na pronúncia do despacho do Tribunal de Instrução Criminal da Horta. A decisão proferida a 19 de Setembro foi apenas no sentido de uma agressão com motivo fútil ou torpe, o que é o mesmo que dizer, sem motivo.
Ademir Moreno morreu na sequência de uma queda causada por murros desferidos na madrugada de 17 de Março, à porta de uma discoteca na Horta, ilha do Faial, por Adriano Pereira, jovem alto e corpulento, de 23 anos na altura. Agressões que resultaram de desacatos envolvendo duas mulheres, uma delas a namorada de Adriano Pereira. De acordo com testemunhas, o cabo- -verdiano terá, junto com outras pessoas, intervindo para cessar a briga, segurando uma das mulheres (a namorada de Adriano Pereira).
Morte à traição
Ainda segundo o relato dos factos, Ademir terá conseguido defender-se da primeira agressão, mas na sequência foi atingido com uma pancada na têmpora, momentos depois, quando não estava a ver o agressor, tendo caído desamparado, batendo com a parte de trás da cabeça no passeio e sofrendo lesões cerebrais que lhe causaram a morte no dia seguinte, de acordo com o jornal português Diário de Notícias.
O colectivo de juízes deu como provado que antes das agressões, Adriano Pereira dirigiu-se a Ademir Moreno dizendo “não tenho medo de pretos, não tenho medo de vocês”. E também noutra ocasião, no mesmo mês de Março de 2024, em que proferiu as palavras, para pessoas racializadas, “vocês pretos de merda querem o quê, vocês não são nada.”
O despacho de acusação dizia: “Tudo indica que o arguido actuou por ódio racial, com total desprezo pela vida humana daqueles que não partilham a sua cor de pele (…) tanto resulta, desde logo, das expressões proferidas pelo arguido antes de actuar (…) cuja adjectivação utilizada se afigura manifestamente de uma alegada e perspectivada superioridade face à vítima, colocando a última num (pretenso) nível inferior civilizacional, intelectual e/ou moral”.
Juízes não vêem racismo
No entanto, o colectivo de juízes de Angra de Heroísmo não levou em conta estes argumentos, concluindo que “não se pode dizer que Adriano Pereira tenha sido determinado por ódio racial”, apontando que “o que motivou o arguido a agredir Ademir Pereira não foi qualquer razão ou ideologia racista, mas o facto de, antes, Ademir ter intervindo, ajudando a separar a namorada de Adriano Pereira da outra jovem”.
Ou seja, uma agressão levada por um motivo fútil. Mas fatal para o cabo-verdiano. Por outro lado, as expressões utilizadas pelo agressor (“pretos do caralho”) foram proferidas “num contexto de tensão e descontrolo, como desabafo impulsivo e não como manifestação estruturada de ódio ou motivação racial.
Para além disso, o tribunal aceitou a contestação do arguido em como nunca houve a intenção de causar a morte da vítima, mas sim “causar-lhe dor e humilhação”, com o segundo murro. O que levou à mudança da qualificação do tipo de crime que o agressor vinha acusado, passando de crime de homicídio com dolo eventual e de crime de ofensa à integridade física qualificada, para dois crimes de ofensa à integridade física, o segundo dos quais ‘grave’, qualificado, agravado pelo resultado da morte.
Da primeira acusação, resultaria uma pena de 12 a 25 anos, e da segunda de quatro a 16. Assim, o agressor, Adriano Pereira, foi condenado numa pena de sete anos e 10 meses, cúmulo jurídico de oito meses de prisão pela primeira agressão e dos 7 anos e 10 meses, pela segunda (de que resultou a morte da vítima).
Adriano Pereira teve ainda como atenuante o facto de nunca antes ter sido condenado e a sua juventude. E dos 724 mil euros de indemnização pedidos pela viúva de Ademir Moreno, o tribunal decidiu pelo valor de 479, 600 euros.
A família irá receber ainda 600 euros pela primeira agressão, em danos patrimoniais, 50 mil euros pelo dano da morte, 45 mil pelos danos sofridos por Ademir antes de morrer, mais 50 mil para a viúva e 55 mil para a filha pelos danos sofridos pelas próprias devido à morte; em danos patrimoniais, 279 mil euros a dividir pelas duas, tendo em conta que Ademir era o ganha-pão da família.
Pena “demasiado leve para uma morte”
Em declarações ao jornal Diário de Notícias, a viúva de Ademir, Lurdes Ferreira, disse ir reflectir sobre a decisão judicial e esperar pelo conselho do advogado sobre o que fazer. Mas afirmou achar uma pena “demasiado leve para uma morte”, ainda por cima, pela morte de alguém que foi intervir em socorro de uma jovem incomodada pelo namorado.
Joaquim Arena
Publicado na Edição 944 do Jornal A Nação, de 02 de Outubro de 2025
