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Outras Vozes, Outras Vidas: Viagem ao Quénia de Hemingway e da contestação nas ruas

Por: Joaquim Arena

Jonathan e McDonald, dois cidadãos quenianos, explicaram-me o melhor que puderam o seu país.  O primeiro, já nos seus sessentas, e o segundo, um jovem de pouco mais de trinta anos. Não cheguei a fixar os seus apelidos africanos. Cheguei ao entardecer a Nairobi, a capital do Quénia, fazendo Praia-Dacar-Lomé-Nairobi, ou seja, um dia inteiro atravessando os céus do continente. Lá em baixo, através das nuvens, o verde variava de tons na terra africana, cruzada por estradas e rios. A primeira conclusão do passageiro ilhéu: todo o manancial de preconceitos e desconfianças sobre companhias aéreas africanas – serviço de bordo ou groundservice – cai por terra. Se a Ethiopian Airlines é há muito um exemplo de qualidade e referência, a companhia privada ASky Panafrican, foi o melhor que aconteceu, aos passageiros da África Ocidental e Central, nos últimos anos. Cabo Verde incluído.

 A Wikipedia diz-nos que foi fundada em 2017 e que é parceira da companhia etíope. E tem vindo a ser “consistently profitable since 2017”. Ou seja, dá lucro. Ganhou, inclusive, a distinção de “Best Airline in West Africa 2023”. Um sucesso em toda a linha e que é visível na simpatia e qualidade de atendimento nos seus escritórios, ainda no Aeroporto da Praia. Para não falar nas opções “chicken or bife?”, das refeições a bordo, e nos simpáticos lanches (quando entre a Praia e Lisboa, na TAP, o manjar não sai dos mesmos raviolis e da insípida omolete). Por curiosidade, viajando em económica, pude inclusive escolher champanhe no voo Lomé-Nairobi. E no mesmo voo de regresso, o vinho é-nos servido nas também simpáticas garrafinhas de 187 ml. Um mimo de há muitos anos. Quem se lembrará? 

Nairobi é uma das grandes metrópoles africanas. A autoestrada que leva do aeroporto Jommo Kenyatta ao centro atravessa bairros de edifícios modernos que espelham a pujança económica da capital queniana. Mas, do ponto vista político, social e económico, a realidade é bem diferente. Que o digam os meus interlocutores. Muitas ONGs internacionais, institutos e missões da ONU têm aqui a sua sede africana. A esse pessoal, junta-se ainda a comunidade diplomática, considerada uma das maiores de África, senão mesmo a maior. 

É o que faz de Nairobi uma das capitais mais cosmopolitas do continente. O Quénia é daqueles países que fazem parte do nosso imáginário. As palavras “bwana” e “simba” (senhor e leão, em kiswahili) eram das poucas balbuciadas pelos indígenas quando estes tinham direito a falar com Tarzan. Só que no Quénia não existem selvas. E era estranho que o branco Rei dos Macacos – como lembrou Muhamad Ali – conseguisse falar a língua dos animais, quando os africanos que estavam ali desde sempre, não conseguiam. 

‘Engarrafamento’ para ver as feras

O escritor americano Ernest Hemingway trouxe as savanas de Masai Mara (Quénia) e do Serenguetti (Tanzânia) para o público americano, nas suas viagens de 1933 e 1953. Os livros As Verdes Colinas de África, As Neves do Kilimajaro e Verdade ao Amanhecer (póstumo) só alimentaram ainda mais o mito da masculinidade do escritor barbudo e de ‘pêlos no peito’. Mas foi o romance protagonizado por Meryl Streep e Robert Redford (que nos deixou há pouco) e as imagens de África Minha (1986), que deram a conhecer ao grande público as vastas savanas desta região da África Oriental. 

Quando atravessávamos a planície do Nairobi National Park, nas vésperas do Macondo Literary Festival, alguém apontou na direcção de umas colinas, ao longe. Foi ali, no seu sopé das colinas Ngong, disse-nos, que a baronesa e escritora dinamarquesa Karen Blixen viveu, no início do século XX, rodeada de dezenas dos ‘seus’ kikuyus. E era ali que o famoso caçador e amante Dennis Fintch-Hetton pernoitava, vindo das suas viagens pelas savanas, também na companhia dos seus fiéis kykuius e maasais. 

A proposta de um safari no Quénia é sempre aliciante, sobretudo para quem chega de uma ilha onde só com muita sorte se consegue avistar um ou outro macaco atravessando, rapidamente, as estradas mais isoladas de Santiago. Deixámos o histórico Fairmont the Norfolk Hotel às 6 horas da manhã e quando rolávamos pela savana o sol subia, ao longe, sobre os últimos edifícios de Nairobi. Mas, não demorou muito até darmos de cara com o primeiro ‘engarrafamento’ de viaturas, num parque natural – todas lotadas de turistas, ávidos para ver animais selvagens. 

E não seria o último. A cada comunicação recebida via rádio, pelos motoristas-guia, lá se iniciava uma nova corrida atrás de um grupo de leões avistados mais à frente. Seguiram-se corridas para ver leopardos e chitas. Nós e mais umas dezenas de viaturas 4×4, hiaces adaptadas com tejadilho amovível. Todas lotadas de novos, velhos e crianças; indianos, africanos, europeus, asiáticos, de máquina e telemóvel na mão para registar as feras no seu habitat. Estas, a poucas dezenas de metros, olhavam-nos, curiosas. Depois, viravam a cara e iam à sua vida. Perguntámos ao motorista-guia se o que víamos ao longe, atravessando o parque, era uma autoestrada sob pilares. “É a nova linha de comboio, liga Nairobi a Mombaça, na costa, com 480 quilómetros de comprimento, feita pelos chineses.” Ficámos a imaginar se haverá viagem de comboio como esta, onde os passageiros são brindados com a vista da fauna de um parque natural.

Dois rinocerontes vieram até muito perto da estrada, alimentando-se e sem tirar os olhos do chão. Podiam virar qualquer das viaturas, se quisessem. Mas não nos ligaram patavina. Manadas de zebras mal saíam da estrada, teimosas, dando passagem às viaturas. Assim como os warthogs, as girafas e os babuínos, todos indiferentes aos engarrafamentos que se sucediam junto aos locais onde as feras vinham beber. Vimos crocodilos e hipopótamos, mas com tal postura e disponibilidade para as fotografias que dir-se-ia fazerem parte do negócio do Parque. O caçador Dennis Finch-Hetton sobrevoou esta região no seu Gypsi Moth, até morrer num acidente, em 1931, para desgosto de Karen Blixen. Em 1954, Ernest Hemingway ofereceu uma viagem aérea à esposa Mary Welch pelo seu aniversário, para verem as manadas dos elefantes. 

Mas ao tentar escapar a um bando de pássaros o piloto desceu e atingiu uns fios de electricidade e despenharam-se. Após terem sido localizados e levados para uma aldeia, o segundo avião que os levaria para Nairobi também se incendiou ao descolar. Hemingway ficou com várias fracturas e queimaduras pelo corpo. No Hospital de Nairobi, dias depois, o autor de O Velho e o Mar divertiu-se a ler os seus obituários na imprensa internacional. Mas o Quénia de que Jonathan me fala é bem diferente daquela que Hemingway conheceu. 

A Revolta Mau-Mau e ‘sobrevivência’ do dia a dia

Quando regressou para o segundo safari, em 1953, o escritor já não tratava os homens que lhe serviam o uísque de ‘boy’, como em 1933. As coisas tinham mudado. Depois da minha conferência de abertura, Jonathan fez questão de vir saudar um escritor que vinha da “terra de Amilcar Cabral”. Contou-me, depois de autografar-lhe o meu livro, sobre a Revolta dos Mau Mau (1952-1960), que pela última viagem de ‘Papa’ Hemingway começava a pôr a então colónia britânica a ferro e fogo. 

O avô de Jonathan fez parte desse grupo de homens, sobretudo da etnia Kikuyu, que se rebelaram contra a administração colonial britânica. O grupo autonomeou-se Kenyan Land and Freedom Army (Exército Queniano da Terra e da Liberdade). Para além dos kikuyus, integrava também maasais, merus e kambas. A imprensa internacional, sob forte influência britânica, levou a cabo uma campanha de desacreditação, desinformação e de diabolização dos Mau Mau. A imagem de ‘selvagens’ e ‘terroristas cruéis’ acabou por sobrepôr-se à sua causa nacionalista e à luta contra o roubo das suas terras e maus-tratos por parte dos britânicos. Estes, como explica Jonathan, fizeram sempre o que lhes havia dado bom resultado: dividiram para reinar. As autoridades coloniais integraram muitos kikuyus fiéis no seu exército que reprimiu a guerrilha Mau Mau. 

Mais de 11 mil mortos foi o resultado da revolta, com muitas delas a acontecerem nos campos de prisioneiros e pelas mãos dos guardas africanos, comandados por oficiais britânicos. Pouco tempo depois e pressionado pela violência e o clima de revolta na colónia, o Reino Unido cedeu e o Quénia conseguiu a sua independência, em 1963. “Em 2013, foram desclassificados vários documentos sobre a repressão e a violação de direitos humanos, no Quénia, mostrando como o governo britânico, o ‘cabinet’, na altura, sabia muito bem o que se passava aqui. Mas, subtis como sempre, a conclusão lida no Parlamento, foi a de que a culpa fora exclusiva das autoridades coloniais locais e que Londres não era responsável pelas torturas, mortes e outras atrocidades cometidas durante a revolta.” 

Jonathan revela-me ainda que os descendentes dos revoltosos, incluindo a sua família, tiveram direito a uma magra indemnização. “Mas na maior parte dos casos, as terras que nos foram roubadas ainda no tempo dos britânicos, nunca foram devolvidas às famílias.” A nossa conversa segue para Cabo Verde, Amílcar Cabral e o PAIGC. Diz-me que é uma “tristeza” o que se passa na Guiné-Bissau. E que aqui, “vivemos numa paz social podre”, referindo-se aos tumultos e confrontos nas ruas entre a população e a polícia, de julho de 2024. “Amílcar Cabral was a great man”, diz-me Jonathan. Mas, vocês também tiveram o Kennyata, respondo-lhe. “Deixe-me dizer-lhe, mal o Quénia se tornou independente ele e a família enriqueceram em pouco tempo e a corrupção explodiu no país. Era Kikuyu como eu.” 

Mas é o jovem motorista McDonald, escalado para me levar ao aeroporto, já no meu regresso, que me diz, apenas: “Sir, we are just trying to survive” (senhor, apenas tentamos sobreviver), quando lhe pergunto pela situação no país. Explica-me como parte das manifestações e dos confrontos com a polícia, ocorreram não muito longe do hotel onde me apanhou, entre o Centro Cultural de Nairobi e a Universidade. A 25 de Julho de 2024, milhares de jovens invadiram o parlamento queniano, em resposta à votação no plenário do aumento dos impostos, subida do custo de vida e à corrupção. A onda de protestos provocou várias dezenas de mortos, estando o verdadeiro número, conta-me, ainda por determinar. “Há muita gente que não consegue viver, não tem o mínimo para alimentar os seus filhos. O presidente Ruto fez promessas na sua campanha presidencial, mas agora virou as costas ao povo e a quem votou nele.” 

Pelo caminho, McDonald encosta. Sou obrigado a sair do carro e a passar por um detector de metais, num posto de segurança, na estrada para o aeroporto, antes e voltar a entrar no carro. Os atentados terroristas (o último, em 2020, pelo grupo extremista, al-Shaabab, em Camp Simba) deixaram marcas profundas e a preocupação com a segurança é das mais apertadas em África. O país está numa posição-charneira, entre a Somália e a Tanzânia. Para Jonathan, esta é apenas mais uma fase da sua história. “Muito antes dos britânicos, nós vimos chegar à nossa costa árabes, persas, chineses, javaneses, portugueses… estavam sempre de passagem e um dia sabíamos que iriamos retomar o controlo das coisas. O terrorismo é outra fase. Mas aos governos maus, parece que ninguém pode escapar.” Já de regresso, o destino final que surge nos écrãs do aeroporto na minha escala em Lomé diz, Praia Santiago, via Dacar. Mas engane-se quem pense que a ASky faz uma ‘perninha’ para vir até Praia, já fora do continente, nestas dez ilhas desgarradas. A segunda escala de 50 minutos em Dacar (reabastecimento) praticamente esvazia o avião. Mas em pouco tempo, o avião volta a encher-se de passageiros senegaleses e de outras nacionalidades, rumo a Cabo Verde. A Praia – Santiago.

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