
Por : JOSÉ REBELO
A democracia endógena, o novo “tribalismo” urbano e o populismo
“(…) A mudança é possível quando há vontade política e mobilização cidadã (…)” (DUVERGER, 1970)
O sistema político moderno, especialmente em contexto das democracias ocidentais, é mar cado pelo fenómeno do bipartidarismo, uma estrutura que, embora promova estabilidade, também limita a diversidade de representação e reforça a hegemonia das elites dominantes.
Especificamente, esta reflexão foca em analisar as limitações mais evidentes da bipolaridade política endógena, identificar algumas das urgências da transformação necessária para a reforma de determinadas visões delimitante de um certo elitismo político e cultural, e observar o papel ambivalente do populismo contextual na ótica de bipolaridade discursiva e da disputa do poder que envolve o sistema.
O bipartidarismo
A semelhança do que acontece, um pouco pelas bipolaridades das democracias ocidentais, as evidências contextuais sustentam que a crença firme na democracia cabo-verdiana e as baixas incidências do nível da confiança dos cidadãos, nas instituições eleitas e não eleitas, esbarram-se no presente contexto, demandando medidas transformacionais e urgentes, que requerem vontade política e capacidade de mobilização da participação cidadã.
Sendo um sistema político, caracterizado pela predominância de dois partidos principais que se alternam no poder, a bipolaridade é entendida como um sistema estável, mas também, como um modelo que marginaliza e condiciona, em certas situações, outras possibilidades de participação que a democracia demanda, por consequência natural do sistema eleitoral maioritário, que favorece a concentração de votos em duas grandes formações políticas (DUVERGER, 1951).
Exemplos, outrora próspera, associados aos países como os Estados Unidos e o Reino Unido, nas suas raízes históricas e institucionais influenciam a bondade da opção desta sistemática. No entanto, críticas apontam que o sistema se perpetua na lógica de um poder restrito, onde as decisões políticas são toma das por uma elite reduzida, mui tas vezes desconectadas das necessidades da população, centralizando as suas atividades numa disputa acérrima que, não raras vezes, privilegia muito mais a conquista e manutenção do poder, do que a virtude de alternância ou de realização do bem comum (idem). Quando assim é, na linha de certo desencanto democrático, se pressupõe que a democracia deva ser reinventada de maneira contínua, para incluir vozes marginalizadas (SANTOS, 2003).
Entretanto, os sinais vindos das democracias ocidentais, nas referências que nos são próximas, apontam evidências de um certo cansaço. Na mesma importância, pelos efeitos perniciosos de um rápido avanço que os impactos das ideias populistas da direita têm evoluído ou os exemplos crescentes da subversão atribuída a uma dada esquerda que acenam em deter minadas realidades, um país com uma economia frágil e volátil aos fatores externos como a cabo-verdiana precisa recentrar-se na necessidade visível de alcançar a robustez da sua democracia e a dimensão política da segurança humana.
Democracia endógena: estabilidade ou estagnação?
No caso da democracia cabo-verdiana, apesar de ser um sistema ainda com margens significativas de desenvolvimento, começa a surgir indícios bastantes que mostram que o regime caminha na mesma direção do cansaço do sistema ocidental. A avaliação da confiança nas instituições eleitas e não eleitas têm sido cada vez menor, incluído a observada nos dois partidos do arco do poder.
No caso da democracia cabo-verdiana, apesar de ser um sistema ainda com margens significativas de desenvolvimento, começa a surgir indícios bastantes que mostram que o regime caminha na mesma direção do cansaço do sistema ocidental. A avaliação da confiança nas instituições eleitas e não eleitas têm sido cada vez menor, incluído a observada nos dois partidos do arco do poder.
Tanto na forma desconectada como uma certa elite decide ou na maneira como algumas vozes da sociedade são confrontadas, não são ouvidas nem mobilizadas, a situação mostra que a pluralidade participativa precisa ser reapreciada, para evitar uma certa estagnação que começa a fazer sentir. Nesse interesse, diante das promessas eleitorais não cumpridas e de realizações de investimentos em políticas públicas que ignoram a prioridade para as necessidades dos mais vulneráveis, a apreciação do cenário insta os que têm poder de decidir, a tomar consciência que o populismo não tem ideologia.
Sobretudo, na linha fina e imprópria, da centralidade estratégica da competição para o poder onde a bipolaridade nutre o objetivo e a lógica de dividir para reinar, não se deve perder de vista, que a construção da coesão comunitária indispensável ao equilíbrio das relações humanas e ao bem-estar social.
O facto, de haver aproximações identificáveis de uma certa extrema-direita e de se configurar nas últimas sondagens que 54% dos cabo-verdianos estariam favoráveis a um regime militar em caso de crise institucional, indicador, que há anos, nunca ultrapassou os 24% (AFROSONDAGEM, 2023), sem pânico, tal sinal deve ser entendido como um toque de alarme a sinalizar algo que merece vigilância e tomada de posição.
Nesta evolução, apesar de Cabo Verde ser uma soberania jovem e uma democracia recente, o país ocupou em 2016 a posição 23.ª do ‘ranking’ global entre os 168 regimes avaliados pela Economist Intelligence (EI, 2016). Atualmente, ocupa a 35.ª posição ao nível das democracias (EI, 2024), conservando os ganhos mais expressivos nos quesitos, Processo Eleitoral e Pluralismo, Liberdades e Respeitos pelos Direitos Humanos. Essa classificativa tem rendido a sistemática da governação nacional o reconhecimento, como uma das primeiras democracias africana e, por algumas vezes, a mais bem avaliada entre os países de língua portuguesa.
Ultrapassado no ‘ranking’, ainda que conservando a pontuação, o contexto sugere acautelar qualquer hipótese de estagnação ou resfriamento do sentimento genuíno da sociedade que deseja uma melhor democracia. Uma democracia que seja capaz de integrar, de ouvir a todos, de gerar consensos e oportunidades de realizar o bem comum e a necessária estabilidade e coesão social do país perante a situação de nível de vulnerabilidade e de riscos de potenciais ameaças contextuais, que ainda incertos, não devem ser ignorados.
Diante dos ganhos conseguidos nestes 50 anos de independência, é perentório que a transformação social que o país ainda demanda, ultrapassa as limitações das fragilidades económicas estruturais e as mazelas do bipartidarismo, sobretudo, na difícil construção de consensos que as elites políticas dominantes preservam, não no espírito formal do regime em si, mas na visão fraturante dos discursos e das ‘práxis’ de políticas.
No concernente, a visão fraturante, está no entendimento “dos que são e daqueles que não são nosso”, mas também está incluído no fosso programático, comparando, as oportunidades notáveis para aqueles que têm acesso ao poder, de realizações do básico e do extraordinário, com outros que até o básico lhes falta. A necessária transformação a respeito, não deve resumir-se às práticas discursivas e cosméticas de ocasiões, mas exige uma reestruturação estratégica das políticas públicas no estreitamento das relações entre o Estado Comunidade e o Estado Poder político que o representa.
Ao longo da história da soberania alcançada em 1975, ainda que se reconhece méritos aos sucessivos governos da república, no presente contexto, manifestações notáveis desafiam a hegemonia do elitismo político e cultural. Seria desejável e preferível a entender, que a transformação que se demanda por meio de uma “revolução passiva”, como argumenta António Gramsci (1935), diria — uma transformação que leva a uma mudança gradual, mas profunda, nas mentalidades e nas estruturas participativas e de gestão do poder — seria preferível a qualquer outra, que conduzisse a agitação social ou pressão subversiva.
O fosso entre o elitismo político e o cidadão parece estar a requerer um diálogo permanente, proximidade consequente e realização equitativo. Um governo que não apenas acena e sorria, que por vezes até chora, mas, também que dialoga, escuta e abraça. Nesta linha, a resistência de determinadas elites tradicionais às reformas que ameace os seus privilégios deve ser analisado com cuidado, perante os cenários de instabilidade e estagnação que parecem, em vias de confrontar a forma de governar.
Significa, nesta linha de importância, que a transformação que o sistema demanda, deve ser encarada como um processo de reconstrução que rompem com o ciclo de reprodução do poder reinante, sob pena de um dia, tais alternativas serem conseguidas por meio de práticas oportunistas menos conciliadoras, tomadas por manifestações ou revoluções, aproveitando-se de focos de descontentamentos populares, que pese embora adormecidos, parecem tornar-se cada vez mais evidentes.
Elitismo dominante, tribalismo urbano e o populismo
O elitismo dominante, seja política ou económica, tende a perpetuar-se no poder via mecanismos de exclusão e cooptação. Reproduzem o seu status através do capital cultural e social, criando barreiras invisíveis para a ascensão de novos atores (BOURDIEU, 1979).
Porém, ainda que os efeitos de “castas” e “clãs” endógenos não sejam comparáveis a certas realidades, uma correspondente analogia está refletida num certo tribalismo urbano, cujo efeito determinado pela bipolaridade partidária que não passa despercebido pela sociedade, seja, no concernente, às suas necessidades básicas, seja no quesito de acesso ao poder nas linhas reais e imaginárias da lógica discursiva que lhes assistem e na capacidade cultural de discernimento do povo — Estado comunidade.
A reinterpretação dos posicionamentos desse tipo de elitismo requer medidas concretas para a governance e reinterpretação dos valores democrático partidário, onde parece requerer, a limitação de mandatos e a promoção de mecanismos de inclusão da participação cidadã na definição de políticas públicas, a valorização de competências e de méritos, que não unicamente, os baseados em critérios históricos e tradicionalista dos privilegiados, sem desprimor da inclusão nas políticas públicas de uma noção e consciência de prioridade que tenha em atenção, a distinção entre o essencial e supérfluo.
Pese embora, nesse jogo, cada um seja enganado a sua maneira, existem outras alternativas no dever ético da representação e da participação das elites no necessário equilíbrio para a justiça comutativa e representativa da dignificação da pessoa humana que se afasta, igualmente, dos “espertismos” individualista e oportunista que o sistema tem gerado e que pode constituir, na mesma ótica, uma janelas de descontentamento, por onde podem, também, entrar o populismo e o radicalismo que gradualmente corrói o sistema, pela ausência de virtudes genuínos que devem circundar a ética do serviço.
O populismo surge, de entre outros motivos, como resposta ao descontentamento bipolarizado de um sistema político que para lá de elitizada, se tornou também discursivamente conflituante, competitivamente tacticista, conservando dificuldades visíveis de gerar consensos sobre matérias que a própria Constituição determina.
A não ser em causa própria, reveja-se aqui, o caso salários dos titulares dos cargos políticos, tal elitismo, parece começar a esbarrar-se em dificuldades visíveis de consenso para o cumprimento de obrigação de interesses democráticos soberanos, como, por exemplo, a indigitação dos órgãos externos ao parlamento. Entra ainda nesse tacticismo elitista, ‘práxis’ recorrente sobre projetos, cujas importâncias, são sobrevalorizadas por uns, subvalorizados por outros, não raras vezes, redenominados, abandonados ou deixados a meio.
As datas, os factos políticos, questões culturais e regionais, são janelas por onde entram o tacticismo, criando narrativas através dos quais os sistemas marcam as suas importâncias e cativam as paixões e exploram os sentimentos das pessoas, longe do cooperativismo salutar que um país com uma economia frágil e uma democracia jovem como Cabo Verde precisa.
O bipartidarismo e a suas práticas pode ser desafiado por movimentos que exploram a insatisfação popular de parte a parte. Esta é já seguramente uma tese duvergereana comprovada. A bipolaridade não deixa de produzir os seus efeitos perversos nas conflitualidades, algumas vezes, fraturantes, resultando tanto em défice cooperativo como em falhas na definição de políticas públicas prioritárias.
Nesse jogo, ambivalência do populismo pode, igualmente, ser uma força democratizante, segundo alguns, dando voz aos excluídos (LACLAU, 2005) como, também pode ser visto como degenerador e autoritário, especialmente, quando utilizado, instrumentalmente, para gerar o medo e a divisão social (RAMOS, 2017).
Em contextos de crise de representatividade, o populismo não tem ideologia. Mas pode mobilizar e exacerbar sentimentos, capaz de despertar discursos de ódios e promover manifestações violentas. Não resolve problemas em si, mas pode revitalizar disputas esquecidas e tornar-se força de bloqueio.
Liminarmente, não são menos inimigos da democracia aquele que manipula o acesso ao poder pela exploração da consciência, do que aquele que compra votos, cativa os lugares determinantes de exercício na função pública para a sua tribo, condiciona a pluralidade participativa ou ignora frequentemente a dignidade da pessoa humana a favor dos interesses das elites dominantes partidárias e que, se esquecem, existir tantas outras formas de servir o país e, que a militância política é apenas uma delas.
A lógica da construção permanente da melhor democracia, parece, longe da estabilidade, uma estagnação que desafia, seja elitismo dominante seja o tribalismo urbano resultantes da bipolaridade política distorcida, ante os efeitos perversos do populismo de direita ou de qualquer outra revolução que pode perturbar a estabilidade política de um país ao qual não se lhe vislumbra um outro trunfo estratégico igual.
Considerações finais
O bipartidarismo, embora promova estabilidade, é um sistema que precisa ser observado de perto, para não dar lugar a um regime, que ainda chamado democrático, conserva práticas de exclusões, ainda que geridas por mãos invisíveis.
O debate sobre a transformação social e a reforma na maneira como as elites dominantes têm contribuído para a construção do poder e governar em Cabo Verde nos últimos 15 anos constituem, definitivamente, pontos indispensáveis para um debate firme sobre que agenda de transformação para o país de modo a romper com os ciclos da exclusão e a perceção material da nova forma como poder está a ser gerido.
Na ânsia de se resolver tudo por decreto e na impossibilidade da criminalização do populismo, até porque seria catastrófico para a democracia cabo- -verdiana, deve se ter em consideração que o populismo se trata somente de um instrumento que incorpora riscos para uns e oportunidades para outros, independentemente dos danos associados que lhe é peculiar.
Dependendo da situação, frente aos resultados atuais da bipolaridade política e da avaliação da confiança no desempenho das instituições da República e das elites, seria prudente, entender os correspondentes desafios e pensar em alternativas mais harmoniosas. Num contexto global de incertezas e de fragilidades do país diante de choques externos, parece prudente, um pacto de regime sobre determinadas matérias.
Como defende DUVERGER (1970) “(…) a mudança é possível quando há vontade política e mobilização cidadã (…)”.



