
Por: Billy Balton Brito*
Quatro anos depois da publicação do primeiro capítulo da Epistemofobia Jurídica, na edição n.º 731 do jornal A Nação, volto a reflectir sobre este fenómeno que, longe de ter diminuído, adquiriu novas camadas de complexidade e expressão.
A Justiça é feita em nome do povo, mas não existe para alimentar perceções fabricadas de justiça. A sua missão não é teatral; é constitucional, racional e fáctica. O julgador contemporâneo deve permanecer impermeável às marés voláteis das redes sociais, cujas opiniões, na sua esmagadora maioria, são rasas, episódicas e desprovidas de densidade argumentativa. O julgador não se pode deixar iludir por pseudo-pressões digitais que, na prática, se dissolvem no vazio da ausência de qualquer acção concreta por parte dos indignados virtuais — nem mesmo nos casos mediáticos, envolvendo figuras amplamente conhecidas, em que a contestação ruidosa nunca se traduziu em verdadeira mobilização jurídica.
A privação preventiva da liberdade é a mais drástica intervenção do Estado na esfera individual. Exige, por isso, fundamentação absolutamente convincente. Não basta invocar teorias abstractas da cautelaridade: é imprescindível demonstrar, com base em factos reais, que a permanência em liberdade do arguido constitui um risco efectivo e actual para o processo ou para a prevenção de novos crimes. O julgador tem de extrair da vida concreta elementos que revelem, de forma nítida, que o arguido — permanecendo livre — repetirá comportamentos prejudiciais ou continuará a realizar actos delituosos. Onde não houver factos, não pode haver cautelar.
O julgador que não observa estas exigências transfigura-se. Deixa de ser julgador e converte-se em justiceiro. O justiceiro é, por definição, um dissidente do Estado de Direito Democrático; alguém que age movido por impulsos pessoais e que julga o sistema jurídico como demasiado lento ou indulgente para com os prevaricadores. O cidadão justiceiro limita-se a projectar o seu arbítrio individual; o julgador justiceiro, porém, faz algo incomensuravelmente mais grave: usa a máquina do Estado — sustentada por todos nós — para materializar os seus próprios desígnios de “justiça”.
Nada disto, felizmente, corresponde à realidade cabo-verdiana. Os nossos julgadores, tecnicamente preparados e intelectualmente conscientes, conhecem o valor e o peso histórico da Constituição da República de Cabo Verde. Sabem que a Constituição não nasceu do acaso, mas de um percurso marcado por momentos sombrios, de subjugação e ausência de dignidade. A actual Constituição ergueu-se precisamente para ultrapassar esses tempos, recolocando o ser humano no centro do universo normativo, guiada por valores personalistas e judaico-cristãos que vêem a pessoa humana como imagem de Deus e como ser naturalmente livre.
“Liberdade é hino e o Homem a certeza” — diz a Constituição. Esta certeza deve estar no âmago das decisões judiciais, sobretudo quando está em causa a privação preventiva da liberdade. A própria possibilidade de recurso demonstra a humildade constitucional do sistema: o legislador reconheceu que o julgador pode errar. E se há erro, há dúvida; e onde há dúvida, não pode haver privação da liberdade. A certeza jurídica é incompatível com decisões imunes às conjecturas e refutações. O que é verdadeiramente certo não admite novos julgamentos.
Uma sociedade desprovida de cultura jurídica torna-se terreno fértil para manipulações, pois uma democracia só é robusta quando os seus cidadãos compreendem, ainda que de forma elementar, a lei que os ampara. É precisamente esse vazio de conhecimento que certos grupos exploram para fabricar perceções artificiais de injustiça, transformando a ignorância jurídica colectiva em arma política, e não em genuína preocupação com o Estado de Direito. Enquanto o público anseia por condenações rápidas, o Direito opera com a lentidão necessária das provas e garantias; e num ambiente em que o Direito deixou de ser estudado para ser adivinhado, tudo o que é adivinhado não pode, por definição, ser validamente aplicado.
É precisamente neste ponto que a epistemofobia jurídica continua a manifestar-se: a dificuldade de aceitar que o Direito é uma construção racional e não emocional, uma ciência de limites e não uma arena de impulsos. Persistem vozes que desejam que o Direito funcione ao ritmo das redes sociais — imediato, irreflectido e punitivo — esquecendo que é essa pressa que historicamente destruiu repúblicas e corrompeu democracias.
Volvidos quatro anos, a conclusão permanece: a Justiça não está refém do clamor social. A Justiça permanece, porque se ancora na Constituição, no princípio da dignidade humana e na razão jurídica — não na opinião digital do dia.
*Inscrito na Ordem dos Advogados de Cabo Verde
Advogado / Deputado Municipal



