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O mito do crescimento económico baseado na dependência do turismo de enclave

Por: João Serra*

O turismo é hoje o principal motor da economia cabo-verdiana. A marca de um milhão de visitantes alcançada em 2023 confirma a recuperação robusta de um setor que, antes da pandemia, já representava mais de um quinto do PIB. É inegável o seu papel na criação de emprego, na atração de investimento estrangeiro e na geração de receitas fiscais. Contudo, esta dependência crescente levanta uma questão essencial: o turismo em Cabo Verde está a criar desenvolvimento sustentável ou apenas a sustentar uma ilusão de prosperidade?

Sob a aparência de sucesso, esconde-se uma vulnerabilidade estrutural. O modelo dominante, centrado em grandes empreendimentos “all-inclusive” nas ilhas do Sal e da Boa Vista, produz crescimento económico mensurável, mas uma integração económica mínima. O turista chega, consome e parte – quase sem deixar rasto económico nas comunidades locais. A maioria dos bens e serviços utilizados pelos hotéis é importada, e os lucros tendem a ser repatriados para o exterior. Trata-se, assim, de um modelo do enclave turístico que gera receitas, mas não cria valor endógeno. 

Joseph Stiglitz, Prémio Nobel da Economia (PNE) de 2001, tem sublinhado que as economias que dependem excessivamente de um setor de enclave, dominado por capitais estrangeiros, correm o risco de reproduzir um “crescimento sem desenvolvimento”. Esta fórmula aplica-se com precisão ao caso cabo-verdiano: há expansão de indicadores macroeconómicos, mas persistem as debilidades estruturais – emprego precário, desigualdade regional e baixa produtividade.

O turismo, tal como recorda Amartya Sen, PNE de 1998, só contribui verdadeiramente para o desenvolvimento quando amplia as “capacidades” das pessoas – ou seja, quando cria oportunidades reais de escolha e de melhoria das condições de vida. Em Cabo Verde, a expansão do turismo ainda não se traduziu em maior autonomia produtiva, nem em diversificação económica, nem em reforço da coesão social. Ao contrário, tende a concentrar os benefícios nas ilhas turísticas e a marginalizar as restantes, onde a juventude continua a emigrar por falta de perspetivas.

A dependência de importações é um outro sintoma da fragilidade estrutural do modelo “all-inclusive”. Boa parte dos alimentos, bebidas e produtos consumidos nos resorts é adquirida fora do país. Isso representa uma “fuga de capitais” constante e reduz os efeitos multiplicadores do turismo sobre a economia nacional. A situação ilustra o que Paul Krugman, PNE de 2008, designa como o problema das “vantagens comparativas mal aproveitadas”: os países especializam-se num setor rentável, mas não criam mecanismos internos para capturar os ganhos de produtividade e valor acrescentado.

Em Cabo Verde, o turismo é uma vantagem comparativa natural – o clima, a localização geográfica, a estabilidade política e a hospitalidade do povo são fatores distintivos. Mas a ausência de uma política concertada de ligação entre o setor e a produção nacional faz com que essa vantagem se dilua. Um modelo de desenvolvimento que se limita a explorar o sol e o mar, sem integrar a agricultura, as pescas, o artesanato ou a cultura, é, inevitavelmente, um modelo de curto alcance.

Os dados do Banco Mundial confirmam a ambivalência do fenómeno: os grandes empreendimentos hoteleiros geram mais receitas fiscais e emprego direto, mas a sua interação com a economia local é mínima. A taxa de utilização de produtos nacionais é reduzida, e o turismo cultural ou comunitário permanece marginal. A consequência é uma economia que cresce, mas não se transforma. Como lembrava Douglass North, PNE de 1993, o desenvolvimento depende menos do crescimento do produto e mais da capacidade institucional de criar incentivos duradouros à inovação e à inclusão.

Em Cabo Verde, essa falha institucional manifesta-se na ausência de políticas eficazes para integrar o turismo com os restantes setores. Falta logística, formação, certificação e apoio técnico aos produtores locais. A agricultura continua incapaz de responder às necessidades do mercado turístico, a pesca artesanal é subvalorizada e o artesanato luta por visibilidade e canais de distribuição. O resultado é um paradoxo: o turismo é o principal cliente potencial da produção nacional, mas a economia local continua excluída dessa relação.

A solução passa por repensar o modelo. Elinor Ostrom, PNE de 2009, defendia que a sustentabilidade económica e ambiental depende da governação partilhada dos recursos e da participação ativa das comunidades. No contexto cabo-verdiano, isso implica envolver as populações locais no planeamento e na gestão do turismo, garantindo que os benefícios se distribuem de forma equitativa e que as decisões não são tomadas apenas por grandes grupos económicos.

O reforço das cadeias de valor locais é, portanto, essencial. Criar parcerias entre hotéis, produtores agrícolas, pescadores e artesãos pode permitir que uma maior fatia da riqueza gerada pelo turismo permaneça no país. Mas para isso é necessário um papel ativo do Estado, como facilitador e regulador, garantindo qualidade, certificação e acesso ao mercado. Não se trata de substituir a iniciativa privada, mas de criar as condições para que ela floresça dentro de uma estratégia nacional de desenvolvimento inclusivo.

A formação de capital humano é outro desafio crítico. O setor turístico cabo-verdiano continua a depender de quadros estrangeiros nas áreas de gestão, restauração e hospitalidade. Sem investimento massivo em educação técnica e profissional, o país permanecerá refém de mão-de-obra externa e de modelos importados. O turismo deve ser uma escola de competências, não apenas um destino de empregos precários.

Além disso, sem resolver o problema da mobilidade interilhas, qualquer tentativa de diversificação turística será limitada. A ausência de transportes aéreos e marítimos eficientes impede a expansão do turismo para outras ilhas e dificulta a circulação de produtos locais para os polos turísticos. O resultado é um arquipélago economicamente fragmentado, em que a riqueza se concentra e o interior se esvazia.

A longo prazo, a questão central é saber se o turismo pode ser um instrumento de emancipação económica ou se permanecerá como um espelho de dependência. Cabo Verde precisa de transformar o turismo de um fim em si mesmo num meio de integração produtiva. Tal como argumenta Stiglitz, “um crescimento que não se traduz em oportunidades para todos é apenas estatística, não desenvolvimento”.

O país encontra-se, portanto, diante de uma escolha estratégica. Pode continuar a apostar num turismo de enclave, vulnerável às flutuações do mercado internacional, ou pode reinventar-se como um destino de autenticidade e sustentabilidade, onde cada visitante contribui para a vitalidade das comunidades e da economia local. Isso exige coragem política, visão e uma governação económica capaz de pensar para além do curto prazo.

Em suma, concluir que o turismo, isolado, resolverá os nossos dilemas económicos é ilusório; o verdadeiro impacto só emerge quando é gerido com visão e inserido numa política de desenvolvimento integrada.

Praia, 22 de novembro de 2025

*Doutorado em Economia

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