
Por: Germano Almeida
Muitas vezes nós no Arco, no meio de uma conversa que estava a ameaçar ficar séria, eu brincava com eles, mais com ele do que com o Tchalé: Quando vocês morrerem eu vou ficar muito triste e com saudades, não sei com quem ficarei a vir ao Arco.
O Tcharles ria-se, mas ele tomava muito a sério o meu queixume e mostrava-se agastado. Mas, German, tu és mais velho, deves morrer primeiro. Essa é a lei natural, respondia com convicção, porém eu fui sempre anarca, defendo que as leis nasceram para serem violadas. Mas eu também sou anarca, troçava o Tchalé.
Nesses tempos as nossas tardes de sexta-feira já eram sagradas. Nenhum compromisso ou ocupação poderia ser suficientemente elevado para nos impedir de nos juntarmos no Arco a ver o mar, a beber vinho, a comer petiscos, a falar bobrinhas e, algumas vezes, conversas sérias.
Mas nem sempre tinha sido assim. A princípio eram ele e o Tcharles, mas um dia convidou-me a acompanhá-los. Gostei da paródia e numa qualquer sexta-feira telefonei-lhe desafiando-o: Vasquinho, vamos hoje ao Arco? Não, German, hoje não, estou a caminho do aeroporto, vou viajar. E vais viajar para onde? Ele nem hesitou: Vou para o Tibete! Para o Tibete? (Eu tinha lido sobre as dificuldades de entrada naquele país, as exigências dos chineses…) Tens visto, autorizações, olha que eles são chatos! Não, está tudo tratado, não te preocupes, um abraço, até ao meu regresso!
Porém, dias depois encontrei o Tchalé: Então o Vasquinho lá conseguiu realizar o seu sonho de visitar o Tibete, disse-lhe. Ele riu-se: Qual Tibete, ele está é no Sal. No Sal, estranhei. Telefona-lhe e logo vês! Telefonei. Conta-me como é o Tibete, pedi troçando, mas ele ria-se: Houve um pequeno contratempo, disse, estou agora em S. Nicolau, na sexta vamos ao Arco.
O Tibete era a sua paixão, ir até lá o seu maior sonho. Contava que quando desenhou e mandou construir o Arco no alto da Praia Grande, fê-lo com cálculos tão rigorosos e precisos rumo ao Tibete, que se alguém partisse dali em linha reta e viajasse sem se desviar um milímetro, necessariamente iria ter ao centro da cidade. Não só no centro da cidade, brincava com ele, tenho a certeza que desembocará à porta do sagrado Templo Jokhang, será só entrar e começar a orar. Mas ele preferia não responder às minhas provocações, a ambição da sua vida era chegar à serenidade espiritual de um budista e não se poupava a esforços nesse sentido. Sim, tens razão, dizia-lhe contrito, é uma aspiração honesta, tanto mais que Buda, entre os ascetas conhecidos, foi um excelente rapaz, pena ter morrido de caganeira, nesse sentido deixou um mau exemplo, ele tão sóbrio, mas deve ter comido alguma coisa estragada…
Mas nada disso era suficiente para abalar as suas convicções sobre o Tibete. De modo que quando adquiriu uma casinha na ribeira do Calhau, ajudámo-lo a tratar da papelada necessária, e no fim convidou-nos para uma festa inaugural. A casa tem que ter nome próprio, opinei, a residência de um artista com a tua envergadura e notoriedade não pode ser mais uma casinha isolada e perdida no fundo da ribeira do Calhau, proponho por isso que seja perpetuada com o nome de Tibete. Foi aprovado por unanimidade.
Mas, entretanto, as idas ao Arco institucionalizaram-se. Além de termos adotado o poeta João Vário, acontecia algumas vezes convidarmos um ou outro amigo a acompanhar-nos: Brito-Semedo, Névada, Nando, Arena…
Em qualquer altura da tarde, quando estávamos só os três, o Vasquinho e eu inventávamos um tema metafísico-filosófico para discordarmos um do outro e discutir aos berros, ponto em que eu ganhava sempre porque, além de gaguejar, ele não sabia gritar. Até que um bocado depois o Tcharles intervinha: Mas vocês estão a sério ou a brincar? Claro que estamos a divergir para nos divertirmos, respondia eu candidamente. Sim, no ta li sabim, constatava Tcharles. Mas Vasquinho ficava amuado por uns minutos. Celebremos a nossa amizade, estendia para ele o meu copo de vinho. Celebremos, respondia com ternura alongando também o copo. E por aquele dia a nossa paz não era mais perturbada.
Certo dia o Tchalé viajou, mas na mesma decidimos ir só os dois ao Arco. Foi um velório em que apenas se bebeu vinho. Experimentamos diversos temas, porém nenhuma conversa fluiu. Inconscientemente estivemos evitando temas fraturantes, de modo que não conseguimos engrenar nenhum assunto. Comemos e bebemos praticamente em silêncio, olhando o sol que nunca mais se escondia no Monte Verde, ao contrário dos outros dias em que lamentávamos que ele fugisse tão cedo. Até que concluímos que perfeitamente podíamos vir antes da hora habitual. Quebrou o silêncio quando entrávamos no carro: sabes, eu e tu somos pessoas muito inteligentes, por isso muitas vezes ficamos sem assunto para conversar. Ri-me com vontade: Vou dizer ao Tcharles que tu achas que ele não é tão inteligente como nós os dois. Não digas, pediu, sabes que ele tem pavio curto, zanga-se depressa. Não digo, prometi, mas ele fez-nos falta hoje, não altercamos sobre nenhum assunto. Sabíamos que ele não estava lá para nos acalmar se ficássemos exaltados.
Foi o Tchalé que sugeriu que convidássemos o poeta João Vário a nos acompanhar ao Arco. Correu bem a princípio, porém Vasquinho começou a manifestar alguma animosidade contra ele, preferia que deixássemos de o levar. Deixa-o, pedi-lhe, ele tem uma conversa agradável, gosta de brincar, conta piadas. Ele tem é mania de que é superior a todos os outros. Acho normal vocês não se darem bem, fiz-lhe ver, são ambos megalómanos, a única diferença é ele ter mais heterónimos do que tu, por isso é natural terem choques. Mas eu não sou megalómano, protestou veemente, sou é aristos, uma palavra grega que significa superioridade. Ele também! Por sinal, vivem ambos o mesmo drama pessoal: Vário é o Pessoa cabo-verdiano, só vai ser reconhecido e celebrizado daqui a algumas gerações; tu és o Sibelius nacional, ele cantou a sua Finlândia, tu cantas um Cabo Verde que ainda muito poucos enxergam, porém, serão os teus herdeiros a enriquecer com a tua obra, tu não terás esse privilégio.
Não obstante, era quase palpável a necessidade que ele sentia de ter reconhecimento público, tinha consciência de produzir uma obra musical ímpar em Cabo Verde, digna de ser interpretada pelas maiores e melhores orquestras do mundo e que, no entanto, se mantinha quase anónima em S. Vicente, perdida no fundo da ribeira de Calhau. Culpa tua, brincava com ele, tivesses escolhido outra terra para viver. Temos que pagar alegremente, se calhar até com muitos agradecimentos, o preço de termos escolhido Cabo Verde para morar. Sim, Vasquinho, já temos saudades de ti!



