
Por: João Vieira Baptista
Cabo Verde vive hoje um momento decisivo quanto ao impacto das tecnologias digitais na formação da opinião pública.
A expansão das plataformas online, a presença crescente de ghostwriters e ghostcolunistas, o aumento de livros supostamente escritos por autores que delegam quase todo o processo à inteligência artificial e a circulação de textos algoritmizados em jornais digitais criam um ecossistema informacional frágil.
Este ambiente aproxima-se cada vez mais daquilo que vários investigadores chamam de IAcracia ou algoritmocracia, uma forma de governação indirecta onde a inteligência artificial e os algoritmos organizam a percepção colectiva de maneira invisível e altamente influente.
As plataformas digitais tornaram-se, para milhares de cabo-verdianos, a principal porta de entrada para a informação.
O que aparece no ecrã de cada utilizador não é fruto do acaso. É seleccionado por sistemas que aprendem preferências, emoções, medos e padrões de comportamento, e que utilizam estes dados para promover conteúdos que maximizem o tempo de permanência nas aplicações.
A lógica que orienta esta curadoria não é a verdade nem a pluralidade. É o engajamento emocional! Quanto mais forte for a reacção, maior será a probabilidade de aquele conteúdo continuar a aparecer.
Num país com baixa literacia digital esta dinâmica torna-se especialmente perigosa. A percepção da realidade passa a ser moldada por sistemas que exibem versões distintas do país para pessoas diferentes. Não há uma referência comum.
Dois cidadãos com interesses diversos podem viver dentro de duas narrativas quase incompatíveis sobre temas políticos, económicos, culturais ou sociais. A verdade deixa de funcionar como cimento social. A erosão dessa base alimenta radicalizações emocionais, favorece discursos simplistas e cria condições ideais para o crescimento de populismos que exploram percepções inflacionadas e distorcidas.
Neste contexto, Cabo Verde assiste ao crescimento acelerado de ghostwriters e ghostcolunistas. Muitos perfis e colunas digitais, atribuídos a autores reais ou inventados, não reflectem qualquer pensamento concreto da pessoa que assina o texto.
Trata-se de conteúdos produzidos com ajuda de inteligência artificial, muitas vezes sem qualquer escrutínio. São textos que circulam como análises independentes e isentas embora frequentemente respondam a interesses claros, desde agendas políticas até disputas internas de grupos de influência.
Mais grave ainda é o facto de já ser visível, em certos jornais online, a publicação de textos com evidente marca algorítmica. Encontra-se estrutura repetitiva, argumentação artificial, frases compostas em padrões típicos de sistemas automáticos e até elogios entusiásticos a pseudoautores de livros que nunca escreveram uma linha sem auxílio de IA.
Este fenómeno não decorre apenas da contratação de ghostwriters. Surge porque algumas destas plataformas não possuem competência editorial nem literacia digital suficientes para identificar autoria artificial ou avaliar a consistência dos textos que recebem. Assim, acabam por conceder espaço e audiência a conteúdos algoritmizados, conferindo-lhes legitimidade e credibilidade enquanto amplificam narrativas fabricadas.
A situação é agravada pela dependência intensa do telemóvel como principal fonte de informação. A maioria dos utilizadores não domina ferramentas de verificação nem compreende como funcionam os algoritmos que moldam o seu consumo digital. Sem esta consciência, muitos cidadãos tomam como verdade qualquer conteúdo que lhes seja repetidamente apresentado.
A proliferação de textos artificiais torna-se, portanto, um factor que contribui para a desinformação e para a manipulação emocional de massas.
As consequências políticas e sociais são profundas. A interação entre algoritmos, desinformação emocional e produção automatizada intensifica a polarização e distorce debates essenciais.
A circulação de opiniões fabricadas, quando se apresentam com a aparência de jornalismo, cria uma espécie de teatro informacional em que o leitor comum acredita estar a consumir verdade quando, na realidade, está a ser exposto a narrativas geradas por sistemas ou por atores que utilizam IA sem transparência.
Cabo Verde precisa de enfrentar este fenómeno com urgência. O país deve reforçar a literacia digital da população, capacitar jornalistas e editores para reconhecer padrões de produção automatizada e exigir maior transparência na forma como plataformas e algoritmos organizam o fluxo de informação.
Sem estes passos arrisca-se a deslizar de forma silenciosa para uma IAcracia, um espaço público onde as decisões, percepções e emoções são condicionadas por sistemas opacos que ninguém supervisiona e que poucos compreendem.
O que está em causa não é apenas a qualidade do jornalismo. É a integridade da democracia. O crescimento do ghostwriting digital, a aceitação de textos algoritmizados por jornais sem preparação técnica e a celebração de pseudoautores criados por IA são sinais de um futuro em que a fronteira entre humano e artificial se torna imperceptível.
Se Cabo Verde não agir agora corre o risco de ver a própria ideia de verdade transformada num produto maleável da tecnologia, moldado por interesses ocultos e reorganizado a cada atualização de algoritmo.
E se esse dia chegar talvez ninguém perceba que já vivemos numa narrativa inteiramente fabricada, talvez já não haja forma de distinguir quem escreve, quem pensa e quem manipula, e talvez o país acorde tarde demais para descobrir que entregou a sua voz, a sua memória e até a sua democracia às máquinas. Será esse o futuro que queremos? Ou continuaremos a caminhar, sem perceber, para dentro da história que outros estão a escrever por nós… sem nunca terem existido!



