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25 de Novembro parece agora mais denso. Jamais esquecerei este mês

Por: Hélio da Cruz 

Há datas que não passam como os dias comuns. Chegam sem anúncio, quase em surdina, mas deixam um sulco fundo no calendário íntimo. Para mim, uma dessas datas é 25 de novembro de 2024. 

Foi nesse dia que desci ao sector (uma área específica ou divisão dentro da prisão, usada para organizar detentos, funções ou atividades. Pode indicar a separação de presos por tipo de crime), por volta das 14:38 minutos (vi o horário nos pulsos de um agente prisional), nome que parece conter já a geologia dos meus pensamentos e a ferocidade serena da minha escrita.

Lembro-me perfeitamente, que estava trajado com um t-shirt de cor preta, short ganga de cor azul e um chinelo cor azul nos meus pés. E na minha mão direita continha um bolsa de cor preta, onde incluía mais roupas e produtos higiénicos e na esquerda continha o meu colchão. A impressão erra diversa.

Lá chegando, a primeira grande impressão foi o forte cheiro de humidade, de mofo mesmo. A falta de claridade, junto com a baixa circulação de ar formou um ambiente carregado de muita umidade e mofo.

Me identifiquei com o agente, o portão é destrancado (com aquele barulho da trava se abrindo), passo pelo portão e ele é trancado (barulho do portão fechando e se trancando).

Esse momento, do trancamento do portão e das trancas, foi bem marcante, ainda mais associado a toda aquela energia que o abiente emana e, sem esquecer, é claro, do forte cheiro de mofo.

Após passar pelo portão, segui por um corredor, passando pelo meio dos pátios. Nesse momento, um grupo de presos havia acabado de dar entrada na unidade e estavam passando pelo procedimento de tratamentos. Quando entrei tudo erra estranho, mesmo estranho.

Uma coisa eu garanto, a energia daquele ambiente é indescritível, o cheiro, então, nem se fala.

Cheiro que, inclusive, ficou impregnado no nariz, fazendo com que qualquer outro cheiro parecido, imediatamente, remeta-me a esse local, mesmo hoje em dia.

Apenas uma coisa não consegui me acostumar e acho que não conseguirei: com a energia emanada.

Era tudo muito novo! De imediato fui colocado na cela 3º. Ala-B. Era tão estranho, que fiquei a ver para os tetos da cela que parecia a figura dos traços, talvez, de traços orientais, possivelmente “japoneses”. Nunca a vira assim. Há nela uma contenção de silêncio e de uma delicadeza quase litúrgica. Fui ali, que aprendi, que o sabão azul é utilizado para colagem de qualquer objeto.

Lembro-me com nitidez do primeiro contacto com Igor Pereira da Fonseca (Pingulim-Meu Primo). Guardava nos gestos uma contenção que se confundia com reverência. Apresentou-me um livro como quem nos confiava uma relíquia. Chamava-se “Bichos”. Li-o como quem atravessa um nevoeiro e encontra, no meio da bruma, uma clareira. Ali respirava-se outra coisa. As palavras vinham da terra, tinham a textura das pedras molhadas, o peso dos dias que custam a passar.

Cada conto trazia uma dor antiga, mas não havia lamento. Havia dignidade, mesmo nos gestos mais humildes. Os bichos, mais do que símbolos, eram vozes. Vozes que nunca me abandonaram.

A serenidade da cela percorre cada gesto, cada silêncio, como uma canção que se desenrola devagar, nota a nota, até se tornar eternidade. Cada olhar parece ouvir o tempo, cada respiração guarda histórias que ninguém mais poderia contar, como confidências que apenas o “destino” compreenderia. É nesse instante, que imagino “alguns” a aplaudirem, silenciosos, com a reverência de quem reconhece aquilo que é verdadeiramente imortal.

Lembro que, dentro do setor, utilizava constantemente o gorro que cobria a minha cabeça onde o sono não morava. Um “Arquipélago da Insónia”, povoado por frases que não dão tréguas, por fantasmas que se sentam à “secretária todas as manhãs”. 

Há ali qualquer coisa de quem caminha por dentro, de quem ainda ouve, nítido. Mas é tarde. Já se entrou. E agora escreve-se a partir daí. Porque, afinal, “Que Farei Quando Tudo Arde?” Talvez isto: sentar-se, escrever, resistir.

A minha boca semi-aberta não é pose. É cansaço, é dúvida, é o fim de uma frase que já não se lembra se foi dita ou apenas pensada. Mas com a voz engolida por um silêncio muito antigo. A fotografia não consola, não embeleza, não protege. Faz o que a grande literatura faz. Fere com precisão. Evoca a pergunta sem oferecer resposta.

Neste dia, não me ocorre citar-lhe a biografia nem repetir os encómios habituais. Prefiro escutar, em silêncio, essa voz que me acompanha desde tão cedo. Prefiro lembrar o exato instante em que percebi que a literatura podia ser isto. Essência. Ferida. Revelação.

Presentemente me convida à introspeção serena, compreendo com mais nitidez que a saúde mental é, em grande parte, o combate contínuo entre a sombra e a luz, entre o silêncio imposto e a voz que insiste em ser ouvida. Que posso, então, recordar o ninho, as asas e, acima de tudo, o voo. Não um voo de fuga, mas de libertação interior, de cura, de afirmação do direito ao mistério do ser que não se deixa reduzir a diagnósticos ou preconceitos.

E que este voo, mais do que metáfora, se transforme em convite: à escuta atenta, à empatia autêntica, à coragem de quebrar o silêncio que, tantas vezes, oprime.

Estas criações não se limitam a testemunhar o sofrimento: são atos de coragem, pontes para a empatia, convites a que caminhemos lado a lado com a fragilidade, reconhecendo nela uma forma de dignidade que exige escuta, respeito e delicadeza.

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