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A CPI da discórdia

Por: Germano Almeida

É bem natural que alguns magistrados não se sintam confortáveis com a realização da CPI designada tendo em análise o caso do deputado Amadeu Oliveira, e assim se compreende a pressa do procurador-geral (ele normalmente tão devagar, quase parado, em casos de flagrante importância social) em solicitar e publicitar o seu pedido de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade dessa resolução, com o bónus acrescido de um incompreensível pedido do efeito suspensivo.

  Diz ele que “o cidadão e deputado Amadeu Oliveira jamais teria sido condenado por crime de responsabilidade, mais precisamente por crime de atentado contra o Estado de Direito, se não tivesse agido na qualidade de deputado, abusando do seu estatuto e violando gravemente os seus deveres funcionais”.  “ é fundado o receio de a CPI ora criada vir a ser instrumentalizada para perturbar o normal funcionamento dos Tribunais, bem como importunar e assediar magistrados… que tenham tido intervenção no processo que conduziu à sua condenação, com perigo de danos irreparáveis, ou de difícil reparação, para valores constitucionais da primeira grandeza como a independência do Poder Judicial”.

  Em certo sentido o procurador-geral tem razão. É bem sabido que quanto mais se mexe na porcaria, pior ela cheira. No caso concreto, vamos admitir que a CPI chegue à conclusão de que o Amadeu não agiu, não invocou nenhum particular poder ou privilégio enquanto deputado. (O que parece certo, tanto mais que sequer passaporte diplomático ele possuía. Aliás, quem conhece a cultura cabo-verdiana sabe perfeitamente que se ele chegasse à fronteira a arrotar poder e funções de deputado para fazer alguém sair do país ilegalmente, os polícias rir-se-iam dele na cara e lhe mandariam ir tocar lata). Mas diante da conclusão de que Amadeu não invocou nenhum poder ou privilégio, quererá dizer que ele foi mal condenado pelo crime de atentado ao estado de direto democrático, porque esse é um crime privativo dos titulares de cargos políticos. Mas se concluírem que sim, que ele agiu como deputado eleito, invocando os poderes e privilégios de deputado para fazer um indivíduo preso sair do país, então terão igualmente que concluir e declarar que o juiz Simão Santos cometeu um crime de prevaricação ao mandar para a cadeia um deputado nacional eleito, sem ter respeitado as normas legais atinentes aos direitos e privilégios e garantias de um deputado. Os deputados conhecem as leis e sabem que foi assim, e devem estar agora a sentir que atiraram um colega para as garras dos Tribunais, certamente não esperando que ele fosse trucidado da maneira que vem sendo.  E daí terem decidido por esta CPI que, como bem demonstrou a dra Maria João de Novais num excelente trabalho publicado no Santiago Magazine, em absolutamente nada põe em causa a separação de poderes que continuará incólume e de boa saúde. 

 Mas por causa ou não desta CPI, todos nós cabo-verdianos fomos agraciados com um discurso do presidente do Conselho Superior de Magistratura Judicial digno de todos os encómios. Quero por isso reconhecer e aprovar como absolutamente corretas algumas das suas asserções. Como por exemplo estas: 

  – a confiança… não constitui um valor que se receba como se fora dádiva divina. Tem de ser construída todos os dias. 

  – a quebra de confiança nos tribunais é um sinal de crise dos espíritos, de afastamento dos cidadãos das suas instituições  

  – temos o dever essencial de reconstruir a confiança nas respostas de cada dia, conscientes das dificuldades da tarefa com que todos os juízes quotidianamente se confrontam.

  Todos conhecemos a expressão atribuída a Júlio César como justificação para se divorciar da sua esposa Pompeia Sula: à mulher de César não basta ser honesta, tem que parecer que é honesta! Porque quando se instala a desconfiança entre casais, vai tudo por água abaixo.

 É isso! Devido a inúmeras decisões perversas de certos magistrados, acabou instalada a desconfiança relativamente a muitas sentenças de alguns tribunais. Muitos magistrados agiram como reis absolutos, como se encarnassem a própria lei, talvez agindo de acordo com o que lhes ditava a consciência, porém longe das leis que tinham jurado honrar.

  Há inúmeros casos, porém, o do deputado Amadeu Oliveira é o mais flagrante. Desde o momento em que ele foi preso por ordem ilegal do juiz Simão Santos, até receber a machadada final que foi o acórdão do tribunal constitucional que não hesitou em transformar um absurdo em costume constitucional, foi uma só sucessão de inadmissíveis desvarios numa ordem jurídica que se afirma de estado de direito democrático. Como bem disse o comedido psicólogo José António Reis “O acórdão sobre o caso Amadeu Oliveira que instituiu no ordenamento jurídico cabo-verdiano os “costumes constitucionais contra a constituição”, foi das intervenções mais infelizes do Tribunal Constitucional, tendo em conta que a existência desse órgão jurisdicional se justifica pela sua tarefa principal que é a de proteger a constituição e não permitir que ela seja violada.”

 A suavidade de José António Reis contrasta bastante com a forma áspera como o procurador-geral critica aqueles que ele acha que têm dado guarida ao deputado Amadeu Oliveira. Ora nós todos estudamos nas mesmas escolas e a gente sabe que essas coisas de direito não mudam muito ao longo dos anos. De modo que dizer que o Amadeu agiu como deputado, abusando do seu estatuto e violando gravemente os seus deveres funcionais, é um verdadeiro atentado à nossa inteligência, ao nosso simples bom senso. Que a Relação de Barlavento tenha usado essa lenga lenga absurda para o condenar pelo crime de atentado ao estado de direito democrático, é uma enormidade que fica mal ao procurador-geral repetir, afinal das contas ele exerce a função de fiscal da legalidade desta República  tida como estado de direito democrático, mas onde infelizmente muitos órgãos de poder se comportam como sendo de regimes fascistas. De modo que as palavras do presidente do conselho superior de magistratura judicial é música para os nossos ouvidos sedentos de ouvir dizer que temos o dever essencial de reconstruir a confiança nas respostas de cada dia. Porque é um erro grave acreditar que a nossa única preocupação é a condenação do deputado Amadeu Oliveira. Não! A nossa preocupação maior são os caminhos por onde se quer conduzir o nosso país. É ouvir falar a torto e a direito e a propósito de seja o que for do nosso famoso estado de direito democrático, e na prática assistir impotentes a diversos órgãos de soberania agindo como se estivéssemos num fascismo destemperado. Foi isso que destruiu a confiança dos cidadãos no poder judicial, o facto de diferentes magistrados terem acreditado que estavam por conta própria, quando na realidade agiam em nosso nome. E não nos sentimos representados por eles. E tentar impedir essa CPI só poderá piorar essa desconfiança porque será uma prova de que sabiam que estavam atuando mal e contra as leis que tinham jurado respeitar. 

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