Por: Arsenio Pina
A revista Jeune Afrique nº 3092 apresenta-nos uma série de artigos e entrevistas de participantes, políticos e historiadores das independências africanas francófonas subsarianas iniciadas em 1960, que nos esclarecem como foram preparadas e executadas pela França e a Bélgica. Independências praticamente ofertadas, visto tanto a França como a Bélgica se terem convencido de que teriam muito menos críticas, mais lucros, menos despesas e responsabilidades cedendo a independência às suas colónias africanas subsarianas, escolhendo os futuros governantes que garantissem a continuação da exploração sem retribuição.
A descolonização francesa foi uma autêntica fraude, bem como a belga. A França utilizou um homem da confiança do General De Gaulle, Jacques Foccart, para escolher os futuros governantes e eliminar aqueles patriotas capazes de promover o desenvolvimento e progresso da África. Todo aquele que pudesse criar problemas aos desígnios dos colonizadores de continuação da exploração das riquezas africanas, seria pura e simplesmente eliminado pelas polícias secretas, por empreitadas utilizando mercenários de confiança ou por intermédio de lacaios obedientes e venais postos na governação. Os poucos intelectuais e técnicos capazes, africanos honestos capazes de assumir o futuro dos seus países, tiveram de fugir para escaparem à chacina. É assim que encontramos, em universidades inglesas, francesas e americanas, cérebros brilhantes, quadros africanos altamente competentes, como professores e investigadores, economistas, médicos, engenheiros, etc., que poderiam estar nos seus países a dar o seu contributo para o desenvolvimento.
A ordem colonial repousava no princípio da expropriação sem compensação. Com a independência escolheu-se quem dava garantia de continuidade dessa ordem colonial, idiotas, canalhas e lacaios dos ex-patrões, os quais passaram a beneficiar de todas as facilidades e protecção das ex-metrópoles.
Até as Nações Unidas ajudaram nessa patifaria, visto as grandes potências do Conselho de Segurança, no contexto da Guerra Fria, estarem interessados na manutenção do stato quo; a Quarta Comissão da Assembleia Geral, que estudava o estado de progresso das independências e de autonomia, tinha uma circular secreta que defendia a blocagem de toda a tentativa de emancipação “rápida”.
Vou-me basear em extractos de duas publicações recentes de historiadores e politólogos, Achine Mbembe e Karine Ramondy, respectivamente, Brutalisme, Ed. Découverte, e Leaders Assassinés en Afrique Centrale, 1958-1961, Entre Construction Nationale et Régulation des Relations Internationales, Ed. Harmattan, para descrever como se planearam e se executaram as independências das colónias francófonas subsarianas, nas quais se utilizaram canalhas nacionais e das ex-metrópoles para o efeito, com o conhecimento e mandato das respectivas metrópoles.
Os líderes mais probos e competentes começaram por ser ridicularizados junto das suas comunidades e internacionalmente. Patrice Lumumba era “o negro com barba de cabra”, Boganda, “o negro que se julga branco”, Nyobè, “o feiticeiro-pantera”, um outro, “o negro obcecado com mulher branca”, etc. A seguir fizeram avançar africanos francófilos de confiança e idiotas, lacaios potencialmente facínoras com garantia de protecção. Os reconhecidamente francófilos, cultos, que ocuparam postos oficiais em França – Leopold Senghor e Houphoet Boigny – encarregaram-se de fazer gorar a pretensão da constituição de uma confederação africana de países que poderia dar mais peso, força política e económica para um desenvolvimento sustentado independente. Os outros, os tais idiotas argentófilos foram estimulados com possibilidade de enriquecimento rápido pessoal, da família e das suas tribos, com facilidades na transferência de fortunas retiradas do erário público e ajudas internacionais para paraísos fiscais, investimentos no imobiliário, em residências palacianas nas ex-metrópoles e em bens pessoais.
O gestor central dessas manigâncias junto do Estado era o Secretário Geral dos Assuntos Africanos e Malgache, entre 1960 e 1974, Jacques Foccart, conhecido como o homem de sombra do Gaullismo, íntimo dos presidentes escolhidos, no sistema em moda na altura de partido único, dentro da comunidade franco-africana. A exploração desses países balcanizados, e não confederados, tornou-se mais rendosa por não haver despesas da ex-metrópole; o destacamento do exército francês garantia tranquilidade bilateral, aos exploradores e seus facilitadores nacionais, estes encarregados de assumir a responsabilidade em caso de algum desaire, no branqueamento da tirania, da corrupção e da brutalidade.
Vejamos as fases pré e justa independências, francófona e belga, deixando de lado a portuguesa, que conhecemos relativamente bem, que foi de luta acesa prolongada, um tanto parecida com a francesa na eliminação de alguns líderes e prisão de outros, e a inglesa, em que não houve liquidação física dos líderes, embora os ingleses tenham criado situações terríveis, na política de dividir para reinar, de incompatibilidades tribais e religiosas que complicaram imenso o futuro.
Ruben Um Nyobè, líder camaronês foi preso no mato e morto, tendo o corpo sido incorporado num bloco de betão; Moumié, da mesma nacionalidade, foi envenenado, na Suíça, por um tal William Bechtel, por empreitada paga pelos serviços secretos franceses. Patrice Lumumba caiu em desgraça após a secessão de Katanga visto não ter concordado com a decisão do Conselho de Segurança das Nações Unidas e pedido ajuda à União Soviética; com conhecimento de EIsenhower e Allen Dulles da CIA decidiu-se afastar Lumumba do Governo, e Mobutu encarregou-se de o prender e enviar a Katanga de Tshombé, onde foi torturado, morto por um soldado belga por ordem de Gerard Soete, comissário de polícia belga. O corpo foi dissolvido em ácido, tendo este comissário confessado que só ficaram alguns dentes por destruir. O escândalo da natureza em riquezas minerais que é o Congo interessava à Inglaterra, EUA e Bélgica, e Mobutu oferecia mais garantia na sua exploração; morreu de doença. multimilionário.
Um exemplo típico da idiotia de certos dirigentes africanos foi Léon Mba, chefe do governo provisório do Gabão, em 1958, e futuro presidente, considerado “O pai da independência do Gabão”, que tem uma estátua no centro de Libreville: pediu ao governador colonial, Louis Sanmarco, que negociasse, em seu nome, com a metrópole, um estatuto de departamento francês para o Gabão. Recebeu uma resposta categórica do Ministro do Ultramar, Bernard Cornut-Gentille, que seria independência, como todas as outras colónias.
Houphouet Boigny nomeou o francês Raphael Saller ministro das Finanças, Assuntos Económicos e do Plano no primeiro Governo pós-colonial e foi ministro costa-marfinense até 1966. Senghor também teve um ministro francês no seu Governo.
Modibo Keita, do Mali, favorável à criação de confederação, veio a sofrer um golpe de Estado, eliminado posteriormente, presumindo-se que por envenenamento. Sekou Touré, não aceitando integrar-se na Comunidade Franco-africana, escapou ao morticínio. Como vingança, De Gaulle mandou retirar da Guiné todos os quadros franceses que aí trabalhavam e as instituições francesas aí criadas, o que complicou imenso o desenvolvimento do país.
Um sargento, G, Eyadema, do Togo, matou a tiro o presidente Sylvanus Olympio, ocupou o seu lugar, autopromovendo-se general; morreu de doença, muito mais tarde, sempre como presidente.
Neste contexto, nas eleições presidenciais, em certos países, até se pode eleger um burro com mais de 90% de votos.
Esses presidentes franco-dependentes e cleptocratas pouco se importaram com o desenvolvimento dos respectivos países, com a criação de estruturas e instituições de caracter social que beneficiassem as suas populações, até porque, para uma simples obturação dentária tomavam o avião presidencial rumo à Europa, os filhos e netos estudavam em boas escolas europeias e americanas. Há mesmo alguns que vivem e viveram mais tempo na Europa do que nos países de origem.
Todas essas infâmias foram praticadas por canalhas conhecidos que ficaram impunes, quando não louvados, e os presidentes escolhidos viveram à tripa forra e bem protegidos. E estranha-se que a África não tenha acompanhado o desenvolvimento doutros continentes! De admirar seria que depois da escravatura, da exportação de escravos para as Américas e Antilhas, da exploração sem retribuição destes e dos respectivos países, do colonialismo e neocolonialismo, não tenha havido a erradicação dos africanos da face da Terra. Afinal, comemorar o quê?
Parede, Setembro de 2020
*(Pediatra e sócio honorário da Adeco)
Publicado no semário A Nação, edição 683, de 01 de Outubro de 2020