Foi um dos filósofos africanos que mais contribuiu para a desmistificação de uma “certa” ideia de África e dos africanos, herdada do colonialismo. Nascido no Katanga, no antigo Congo Belga e falecido no passado dia 22, nos EUA, aos 83 anos, Valentin Yves Mudimbe dedicou a sua vida académica a desconstruir o que chamou de ‘biblioteca colonial’ criada pelo Ocidente sobre África e os africanos.
Dono de invejável erudição, Valentim Yves Mudimbe, falecido no passado dia 22, aos 83 anos, nos Estados Unidos da América (EUA), onde vivia desde os anos 1980, deixa uma obra de grande valor, segundo os seus vários admiradores em África, Europa e nas Américas.
O seu livro mais marcante será “A Invenção da África” (1988), de acordo com os estudiosos e apreciadores, mas há quem prefira “A ideia de África” (1999), considerado mais acessível para um público médio. Os dois livros espelham a ideia do conhecimento próprio do africano e do seu saber, contra a construção de um saber colonial, a partir da já referida ‘Biblioteca Colonial’, livros e conceitos que passavam por desqualificar e menorizar os africanos, como forma de legitimar o assalto e a pilhagem do continente, como aconteceu no Congo, país natal de Mudimbe.
É com “A invenção de África” que Mudimbe vai conquistar o espaço da língua inglesa, permitindo-lhe ensinar em várias universidades americanas, ele que acabou adquirindo esta nacionalidade. Como alega, desde o século XV, com realce para o século XIX, que o Ocidente “inventou” África como um continente “selvagem” e “bárbaro”, razão para justificar e legitimar a sua conquista pelas potenciais imperiais, a pretexto de levar as luzes a esse “mundo ignoto”.
Mas o que faz a riqueza da obra do filósofo congolês é a sua variedade, situando-se entre a filosofia, o romance, a poesia e o ensaio de reflexão sociológica, política e histórica, mas também as artes plásticas. E todos os géneros abordados têm o mesmo objectivo: a busca pela identidade, a ligação entre a tradição e a modernidade, mas também as razões da violência política que tem marcado o continente. E aqui, Mudimbe falava da estratégia das potências coloniais de controlo dos povos africanos, desde o início do colonialismo, ao colocá-los uns contra os outros, com a ajuda, inclusive, das várias igrejas (católica e evangélicas) que se lançaram à conquista das almas africanas, para supostamente salvá-las do paganismo.
Este filósofo africano e pensador do mundo, conquistou admiradores com o seu trabalho de desconstrução do olhar do Ocidente sobre a África, na linha daquilo que o senegalês Sheik Anta Diop também procurava fazer, através da História, mas discutindo e questionando também pensadores como Leopold Senghor e Aimé Césaire, entre vários outros. Ideias estas plasmadas em “A invenção da África”, livro que se tornou um clássico dos estudos africanos, mas também “A ideia de África”.
Em ambos títulos pode-se seguir a génese da construção do saber africanista, de um saber sobre o continente, mas a partir de um olhar exclusivamente ocidental. E isso resulta do facto, como Mudimbe explica, de todos os estudiosos envolvidos nessa aproximação ao continente e suas diversas culturas, antropólogos, etnólogos, historiadores, sociólogos, botânicos, comerciantes, exploradores, etc., serem, eles próprios, agentes dessa colonização. Nas suas palavras, a construção dessa “biblioteca colonial” que irá ser um instrumento do Ocidente para administração dos povos colonizados.
Ciente disso, a partir da vasta literatura ocidental, que remonta aos gregos e romanos, o filósofo congolês vai colocar em questão determinadas abordagens e conceitos, a leitura e o olhar antropológico, a leitura que se faz sobre o outro, o diferente. E é aqui, segundo Mudimbe, com a ideia de retomar, de se reapropriar do discurso sobre si mesmo, sobre o africano, que deve passar a nova abordagem.
Ou seja, ser dono do seu próprio discurso, sobre a sua própria pessoa, aquilo que o africano é, na sua realidade e como funcionam as sociedades africanas. No fundo, libertar a África do olhar ocidental, colonial, que ao longo do tempo negou a alteridade africana. Uma negação que resultava da ideia colonial de um espaço selvagem, sem história, à espera que o Ocidente lhe viesse atribuir uma história e um significado. Em suma, a civilização.
Vida eclesiástica interrompida
Nascido em 1941, na região do Katanga, no Congo Belga, Mudimbe desde cedo quis seguir uma carreira eclesiástica. E é esta vocação que lhe vai permitir reflectir sobre a forma como o espírito e as mentes dos africanos foram formatados pela disciplina colonial, com a ajuda, inclusive, dos missionários europeus e norte-americanos. O filósofo vai, ele próprio, responder com uma forma de ‘indisciplina’, que se reflecte na apropriação do saber constituído pelo Ocidente, nomeadamente nas ciências humanas, a sociologia, a antropologia, a filosofia, para contrariar as ideias coloniais. Isso para além de tentar compreender como é que as formas de dominação colonial foram construídas.
O caminho da gnose
Para chegar à emancipação do pensamento e construir um saber autenticamente africano, Mudimbe propõe o caminho da gnósia, que contrapõem o conhecimento pessoal espiritual, à compreensão e conhecimento intelectual. Para o filósofo interessa a importância do indivíduo em si, sem ignorar as construções preexistentes do saber, preexistentes ao indivíduo (a língua, o sistema filosófico e cultural em que evoluímos), como uma forma de ligação ao mundo, defendidas pelo filósofo francês Michel Foucault.
E sem negar Foucault, Mudimbe insiste na gnósia, porque esta implica que seja o indivíduo a apropriar-se do saber para chegar ao conhecimento e ir a uma dimensão inicial na construção e apropriação do saber. Esta gnósia seria uma espécie de saber ‘escondido’ que teria ‘escapado’ a essas disciplinas ocidentais, que estão na base da “biblioteca colonial”.
Aos 10 anos, Valentin Yves Mudimbe ingressou num seminário católico dirigido por beneditinos europeus, vivendo em reclusão total. Aqui vai iniciar-se na leitura de obras de autores antigos como o grego Heródoto, o romano Plínio, o teólogo Santo Agostinho, mas também autores modernos, como Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Leopold Senghor, Franz Fanon, entre outros.
Após abandonar o seminário, por não mais aceitar, como diz, a “hipocrisia da igreja”, conclui os estudos superiores na Universidade Lovanium de Kinshasa, formando-se em Filologia Românica. Obtém uma pós-graduação em Sociologia e Linguística Aplicada, em França, doutorando-se depois em Lovaine, na Bélgica, em 1970. No início dos anos oitenta, fugindo à repressão do regime de Mobutu Sese Seko, radica-se nos EUA, onde é professor em várias universidades, principalmente na Duke University.
Para além da “Invenção de África” e “A ideia de África”, Mudimbe é autor de várias obras de ficção e poesia. Apesar de cultivar estes dois géneros literários, é no ensaio que verdadeiramente a sua obra adquire maior alcance e mais seguidores, tornando-se referência nas academias europeia, americana e africana. Os dois livros podem ser “descarregados” através da internet.
Joaquim Arena
