A luta pela recuperação da Praia da Matiota, em São Vicente, está em vias de ganhar novos contornos com revelações preocupantes feitas pelo presidente da Associação Cívica para a Valorização da Matiota (ACVM). Segundo António Pedro Silva, a venda ilegal do histórico espaço, há vários anos, está em vias de concretização, mesmo contrariando a legislação que determina uma faixa de 80 metros de proteção costeira.
Conforme explicou ao A NAÇÃO, os terrenos onde se situa o que resta da antiga Praia da Matiota foram vendidos no tempo em que Onésimo Silveira era presidente da Câmara Municipal de São Vicente (1991-2000). Para o local planeia-se a construção de seis vilas de luxo e um porto para iates, algo que, no entender de António Pedro Silva, representa “uma afronta” à Constituição da República e aos direitos dos são-vicentinos de poderem frequentar a praia, conhecida outrora pelo seu trampolim.
Como advoga aquele activista mindelense, antigo presidente da ADECO, também conhecido por Tonecas Silva, a antiga Praia da Matiota não é apenas um local de lazer. “É um marco cultural e histórico que atravessa gerações e se entrelaça com momentos marcantes da identidade mindelense”.
Como recorda também, era na Matiota que o célebre escritor e intelectual António Aurélio Gonçalves, “Nhô Roque”, encontrava a paz das águas e o refúgio para sua inspiração. Religiosamente, tomava seu banho na piscina natural conhecida como Tanquim, num ritual que demonstrava sua forte ligação com o espaço. A Matiota, para os pensadores da época, “era muito mais que uma praia: era um reduto cultural”.
O legado inglês
Durante o período colonial, a presença britânica deixou marcas emblemáticas. Para facilitar o acesso ao mar, os ingleses construíram uma escadaria que se tornou conhecida como “Step”, um nome que até hoje persiste na memória dos mais antigos. Além disso, nas décadas de 1930 ou 40, ergueu-se um trampolim sobre as águas, o único existente em Cabo Verde até então. Ainda hoje, muitos jovens são desafiados a mergulhar no local naquilo que ainda resta do trampolim. Mais tarde construi-se uma esplanada bastante movimentada sobretudo no verão.
De se referir que a antiga Praia da Matiota também foi palco de significativos avanços tecnológicos na época. Foi lá que a antiga JAIDA, antecessora da Electra, instalou a primeira estação de bombagem de água salgada para a sua dessalinização, “um dos primeiros passos para a independência hídrica do arquipélago”, aponta Tonecas. Além disso, após um ataque de tubarão a um cidadão italiano foi construída a primeira proteção metálica submersa para evitar novos incidentes, “um pioneirismo na segurança dos banhistas”.
Reduto de desportos náuticos
Antes da degradação do espaço, consequência da construção na década de 1980 dos estaleiros da Cabnave, nas suas proximidades, a Praia da Matiota chegou a ser um verdadeiro centro desportivo. A histórica “Sokols” promovia ali competições de natação, regatas e corridas de botes, tornando o mar um palco vibrante de talentos e tradição. As velas dos barcos coloriam a paisagem, trazendo vida à enseada.
Local de bailes e espectáculos
A Matiota não foi apenas cenário da prática desportiva, mas também de grandes momentos musicais. Foi ali, na então esplanada, que o lendário conjunto “Voz de Cabo Verde”, de Luís Morais, Morgadinho, Bana, entre outros, realizou alguns bailes e espectáculos que marcaram gerações. No dizer de Tonecas, a praia pulsava com ritmos que embalaram noites memoráveis, tornando-se um dos espaços mais icónicos da celebração popular.
Hipocrisia das autoridades
O entrevistado do A NAÇÃO denuncia, entretanto, o que chama de “incoerência” e “hipocrisia” das autoridades do país ao proclamarem a defesa dos mares enquanto sacrificam o acesso da população de São Vicente a uma das suas praias mais emblemáticas.
“A juventude é impedida de usufruir dos espaços naturais, enquanto grandes investidores avançam com projectos elitistas”, reclama o presidente da Associação Cívica para a Valorização da Matiota. “Defender os oceanos sem cuidar da população é uma autêntica hipocrisia”, reforça.
ACVM anuncia a retoma da limpeza do Tanquim
No Dia dos Oceanos, e em plena celebração dos 50 anos da independência de Cabo Verde, a ACVM anunciou para 5 de Julho a retoma da limpeza do “Tanquim”, algo iniciado há três anos no esforço de devolver dignidade ao local. Além disso, conta lançar igualmente uma campanha para a angariação de fundos destinada à construção e instalação de uma nova escada metálica para substituir a anterior, destruída há bastante tempo.
Há três anos, e na sequência desse esforço de resgatar a Matiota, e apesar da luz verde do Ministério do Mar e da alocação de dez mil contos pela ENAPOR para a reabilitação da praia, todo esse tempo se passou sem que uma única pedra sequer tenha sido movida. Segundo António Pedro Silva, o estado da Matiota só piorou, transformando-se “num triste retrato do abandono institucional”. A ACVM, através do seu presidente, apela por isso à mobilização da sociedade civil, tanto no país quanto na diáspora, e pede apoio financeiro para garantir a instalação da referida escada metálica, avaliada em cerca de 60 contos, bem como a compra de ferramentas essenciais à recuperação da praia.
“Este é um momento crucial para evitar que um bem público seja definitivamente sequestrado por interesses privados”, alerta António Pedro Silva, rematando que a Matiota pertence ao povo, sendo por isso a sua recuperação um dever colectivo. “É com actos que defendemos o que é nosso”, conclui.
João A. do Rosário
