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Entre provas e palavras – Cabo Verde, Brasil, Nepal e os sinais vitais da democracia

Por: Karina de Fátima Gomes*

Nesta semana (no dia 15 de setembro) celebrou-se o Dia Internacional da Democracia: um lembrete de que a cidadania não cabe apenas no ritual do voto. A data é assinalada desde 2008, após resolução da Assembleia-Geral das Nações Unidas de 2007. 

Os recentes acontecimentos no Nepal, onde protestos anticorrupção liderados sobretudo por jovens degeneraram em violência (com pelo menos 72 mortos), levaram à renúncia do primeiro-ministro K. P. Sharma Oli e à nomeação, a 12 de setembro, de Sushila Karki como primeira mulher a chefiar um governo interino, que prepara eleições para 5 de março de 2026. Esses episódios mostram como as democracias podem ser testadas e, ainda assim, buscar saídas institucionais. 

Cabo Verde, por sua vez, é reiteradamente reconhecido como uma das democracias mais sólidas de África por índices internacionais (International IDEA – Global State of Democracy 2025; Freedom House – Freedom in the World2025; EIU – Democracy Index 2024, score 7,58).  

Em Cabo Verde, país de ilhas e diásporas, a democracia ganha corpo no dia a dia: quando ouvimos o outro, pedimos contas ao poder, cuidamos do que é comum e transformamos desacordo em diálogo. Democracia madura não teme a crítica; organiza-a. É o que Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (autores de Como as Democracias Morrem) chamam de “guarda-corpos” informais: tolerância mútua (reconhecer o adversário como legítimo) e autocontenção (não usar o poder “até à última gota”). Sem esses freios culturais, a erosão acontece por dentro das instituições, não com tanques, mas com gestos quotidianos que desfiguram regras e costumes. A boa notícia é que os mesmos hábitos que desgastam a democracia também podem fortalecê-la.

Vale, ainda, recordar o debate de Crises da Democracia: no diagnóstico clássico (Crozier, Huntington e Watanuki), a pressão de expectativas sociais sobre um Estado de resposta limitada pode criar “ingovernabilidade”; já Adam Przeworski sublinha, hoje, como desigualdade persistente, frustração com resultados e erosão da confiança abalam regimes democráticos. Em comum, uma lição: vitalidade democrática depende de regras e instituições, mas também de resultados e confiança.

Aqui, a literatura é mais do que ornamento: é treino de cidadania. Como lembra o crítico brasileiro Antonio Candido, a literatura é “direito humano”, porque nos dá linguagem para existir no espaço público (e para consciencializar pessoas, construir pensamento crítico, provocar reflexão). Outro brasileiro, Paulo Freire, ensinou que educar é dialogar: ler o mundo para ler a palavra. E quando a periférica Carolina Maria de Jesus, em Quarto de despejo, escreve o quotidiano da fome e da exclusão, ela não pede licença: entra na esfera pública e alarga a conversa democrática para incluir quem ficou à margem. Esse gesto é valioso nas nossas ilhas: diversidade social não é ruído, é dado.

Também por isso importa cultivar o desacordo civilizado. Lima Barreto, em Triste Fim de Policarpo Quaresma, ridicularizou nacionalismos vazios e a tentação de confundir amor ao país com intolerância. A sátira não destrói a pátria; desmonta ídolos autoritários. E quando a história pesa, Graciliano Ramos lembra, em Memórias do Cárcere, que o testemunho é antídoto contra retrocessos: memória partilhada é vacina institucional.

Num arquipélago espalhado pelo mundo, literacia mediática é tarefa de todos. As redes aceleram informação e desinformação. Ferreira Gullar, em Poema Sujo, escreveu em exílio a urgência de nomear a realidade, e nomear é o primeiro passo para não ser manipulado. A cada afirmação, perguntemos: qual a fonte? qual o dado? O espírito democrático exige mais do que paixão: pede provas.

Partidos e instituições também têm o seu exame de consciência. Levitsky e Ziblatt sublinham o papel de porteiros (gatekeepers): cabe aos partidos filtrar lideranças que insultam regras, normalizam violência ou ameaçam liberdades civis. Regras internas claras, transparência e formação cívica não são luxo: são prevenção. E prevenção é mais barata do que reconstrução. Como metáfora de um sistema imunitário que reage para preservar o corpo democrático, vale lembrar o recente julgamento que tornou Jair Bolsonaro inelegível até 2030 por abuso de poder e ataques ao sistema eleitoral, sinal de que instituições, quando funcionam, corrigem os seus desvios. 

A juventude é agora. Projetos de leitura, ciência cidadã, orçamentos participativos juvenis e cultura de bairro criam hábitos democráticos. A autora brasileira Conceição Evaristo chama de “escrevivência” a entrada das narrativas de mulheres negras no centro do texto: participação política em linguagem estética. Nos bairros periféricos de São Paulo, Sérgio Vaz e a Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia) provaram que sarau é assembleia: microfone aberto como exercício de voz pública. Em Cabo Verde, bibliotecas, clubes de leitura e coletivos culturais podem cumprir a mesma missão: do Mindelo à Praia, do Tarrafal a Santa Catarina.

Democracia também precisa de imaginação. Nélida Piñon, em A República dos Sonhos, costura migrações e pertenças: quem parte continua a pertencer. Essa é uma chave cabo-verdiana por excelência. A diáspora não é perda; é extensão do parlamento da vida. E Chico Buarque, entre o teatro e o romance, lembra que a alegoria ajuda a falar de censura, poder e liberdade quando o literal fica estreito, a arte abre claraboias num quarto abafado.

No fim, o teste é simples e difícil ao mesmo tempo: informar-se bem, participar, dialogar com respeito, apoiar o que é local e cuidar do espaço comum (do bairro à praia). Se a erosão democrática é um processo, a sua defesa também o é: pequenas decisões consistentes que, somadas, criam instituições confiáveis e uma cultura de confiança. Democracia não é um evento; é um hábito, e, nas ilhas e na diáspora, em Cabo Verde, no Brasil ou no Nepal, começa na forma como escutamos e respondemos uns aos outros.

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