Marco Silva, especialista em Marketing Digital, diz que acompanhou de perto o comportamento dos utilizadores nas redes sociais, durante a tragédia, procurando compreender como reagem nestas plataformas. Hoje, não tem dúvidas: a solidariedade digital deve ser um instrumento de transformação e não um palco de exposição.
A viralização de imagens dos impactos e das vítimas das enxurradas do dia 11 de Agosto levanta questões sobre as fronteiras ténues entre a ética e a liberdade de expressão, aliadas igualmente ao marketing digital.
Com 321 mil utilizadores do Facebook, 131.200 mil do Instagram, 119 mil do TikTok (+ de 18 anos) e 88.600 mil no Linkedin, a sociedade cabo-verdiana tem já uma forte presença nas redes sociais, incluindo artistas, influencers, políticos, cidadãos comuns, etc.
Emoções geram maior engajamento
Hoje em dia, mesmo que em alguns casos, com pouca actividade, toda a gente está praticamente nas redes sociais, no mundo digital, seja para simplesmente ver, ser visto, ou estar a par do que acontece.
“Com a proliferação das redes sociais, muitos internautas vêem-se mais como marcas do que como indivíduos. Cada publicação, cada fotografia, cada história partilhada é uma oportunidade de construir uma imagem, ganhar visibilidade ou reforçar uma reputação pessoal, em que conseguir o maior número de “likes” é o propósito final. Ou seja, a validação através de “likes”, um fenómeno central no comportamento digital contemporâneo”, começa por analisar Marco Silva a presença nas redes, de forma genérica.
Nesse contexto, Marco Silva lembra que as redes sociais se movem, em grande parte, à base das emoções e, neste universo, os conteúdos que provocam reacções fortes, como surpresa, indignação ou empatia, tendem a gerar maior envolvimento e partilhas.
“Ao mesmo tempo, quando alguém se depara com imagens de destruição ou sofrimento, é normal que sentimentos de empatia, choque ou uma simples vontade de pedir socorro resultem em reações imediatas, que levam à partilha dessas situações, muitas vezes sem reflexão e movidos pelo impulso e pela instantaneidade. Este fenómeno, conhecido como ‘sharing of emotion’, explica por que tantas pessoas começaram rapidamente a divulgar vídeos e fotografias das vítimas da tempestade”, observa.
Febre digital A chamada “febre digital” não é apenas espontânea, como explica o entrevistado do A NAÇÃO. “Resulta da combinação entre estímulo visual, resposta emocional e o ambiente da rede, onde cada partilha aumenta a visibilidade e reforça o envolvimento”.
Questionado se considera natural haver aproveitamento de marketing, por parte de quem posta, mesmo que de forma involuntária/voluntária, especialmente por parte de artistas e influencers, este especialista lembra que antes de serem artistas ou celebridades, são, acima de tudo, pessoas, mas também não estão imunes.
“É natural que partilhem imagens e vídeos do terreno, mas, no caso de celebridades, isso gera um efeito duplo. Por um lado, promovem a causa, incentivando ajuda e recursos; por outro, reforçam a sua própria visibilidade, muitas vezes de forma involuntária, mas real. Trata-se, de facto, de uma situação “win/win”: a população beneficia do engajamento, que pode produzir benefícios para quem precisa de ajuda nessas situações, enquanto quem ajuda consolida a sua imagem de compromisso social”.
O caso de Sebah
Mesmo quando o objectivo inicial é genuíno, Marco Silva lembra que existe inevitavelmente um ganho de visibilidade e reputação pessoal, o que reforça, cada vez mais, a necessidade de uma comunicação responsável, ética e consciente.
“Ainda assim, mais cedo ou mais tarde, o historial destes artistas ou figuras públicas acaba por revelar quem age apenas movido pelo momento e quem está, de facto, comprometido com as causas sociais. Sem querer personalizar, mas trazendo um exemplo concreto, há o caso do influencer e promotor de eventos Sebah, que está longe de gerar consensos. Contudo, tem o seu público, a sua ‘tribo’ e a sua audiência, e liderou, até ao momento, a maior campanha de angariação de fundos levada a cabo por uma só pessoa para a situação em São Vicente”, exemplifica.
Este, explica, é o poder que as redes sociais detêm actualmente. Um poder que o sistema “tradicional” e “institucional” não consegue controlar e que, quando bem gerido, pode produzir impactos verdadeiramente transformadores para o bem comum.
Exposição desnecessária

A imgaem do pequeno Maxwell cheio de lama a sorrir viralizou nas redes sociais como forma de apelar aos apoio
Também a partilha da imagem da pequena Rânia de vestido vermelho a sorrir no meio da tragédia não passou indiferente a Marco Silva. Tal como Carla Palavra, defende a protecção da imagem das crianças, como previsto na lei.
“Os utilizadores das redes sociais esquecem-se de que existem leis a cumprir, e não obstante a sensação de alguma impunidade nas plataformas, convém relembrar que as leis do país continuam a aplicar-se. Dito isto, é claro que a imagem gerou sentimentos de ternura e esperança, impulsionando a partilha e a ajuda”.
Este caso, no seu entender, evidencia a necessidade de equilibrar o impacto positivo com a proteção dos direitos das vítimas, principalmente quando são menores, amparados pela Constituição.
“Toda a partilha de imagens ou histórias deve ser feita apenas com consentimento explícito e, no caso de crianças, sempre com autorização dos responsáveis legais. É possível preservar o efeito emocional sem expor identidades, garantindo respeito e dignidade às vítimas”, apela.
Solidariedade versus exposição
Para concluir, o nosso entrevistado lembra que o comportamento humano nas redes sociais em situações de desastre combina “empatia, necessidade de ação imediata e construção de visibilidade pessoal”. Isto porque, como observa, a linha entre solidariedade e exploração é, porém, extremamente ténue.
Nesse contexto, saber respeitar esse limite “é um dever ético que deve guiar todos”, seja utilizadores, figuras públicas e meios de comunicação. “Se queremos que a solidariedade digital seja, de facto, um instrumento de transformação e não um palco de exposição”, finaliza.
Parte integrante da reportagem Vítimas das enxurradas de São Vicente: Entre a exposição, o apoio e o marketing, onde fica a dignidade? Publicado na Edição 942 do Jornal A Nação, de 18 de Setembro de 2025
