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Economia

São Vicente reabre ao mundo com a temporada de cruzeiros

A manhã de terça-feira trouxe brisa seca e poeira solta, levantada pelo vento que varre as cicatrizes da cidade. O chão, há dias alagado, agora estala sob o sol abrasador. Foi neste cenário que o primeiro navio da temporada de cruzeiros, o Scenic Eclipse, atracou no recém terminal de São Vicente. A ilha, ferida, mas não vencida, reabre-se ao mundo com o rugido dos motores e o olhar curioso dos primeiros visitantes.

O Terminal de Cruzeiros do Mindelo recebeu na terça- -feira, 30, o primeiro navio de cruzeiro, o Scenic Eclipse, uma embarcação de luxo, da companhia australiana Scenic Luxury Cruises and Tours, com 168 metros de comprimento e capacidade para 228 passageiros e 176 tripulantes. A recebê-los tiveram a recepção habitual, com figurantes a mostrar um pouco do carnaval do Mindelo. Depois, vários desses turistas foram vistos a circular pelas ruas da morada, procurando motivos de atracção e recordação.

Novo arranque

Depois das peripécias que ensombraram a inauguração do terminal de cruzeiros, em Junho passado, o administrador da Enapor, Eduardo Lima, classificou a chegada do Scenic Eclipse como “histórico” e de “grande importância” para as comunidades locais e para os sectores de transporte, restauração, artesanato e hotelaria.

Também o ministro do Mar, que visitou o navio, disse que a intenção é explorar o novo porto ao máximo, não só a nível do turismo de cruzeiro, mas também do turismo náutico e desportivo. Jorge Santos afirmou-se convicto de que “este porto de cruzeiro é um nó de cruzeiro do Atlântico Médio”, reforçando a ideia de que o Terminal do Mindelo se tornará um ‘hub’ no sector, com ligação aos aeroportos e restante infra- -estrutura turística. “É isto que sofistica o turismo de cruzeiro”, sublinhou.

Cultura como resistência

Se o entusiasmo era evidente nas autoridades, o mesmo não se pode dizer em certos cidadãos anónimos que procuram, ainda, refazer a vida depois do desastre de 11 de Agosto, como é o caso Cristina, vendedora ambulante há vários anos.

“Quando vi o navio a chegar, senti uma mistura de orgulho e revolta. Orgulho porque ainda estamos aqui. Revolta porque muitos de nós perdemos tudo com as chuvas e ninguém nos veio perguntar se estávamos prontos para receber turistas.”

Cristina reorganizou a sua banca com tábuas reaproveitadas e tecidos lavados à mão. Vende colares, histórias e esperança. Como ela, dezenas de comerciantes informais tentam capitalizar a temporada, mesmo sem apoio logístico ou garantias mínimas.

“Não podemos esperar que a cultura seja tratada como prioridade. Então, fazemos dela urgência”, afirma, por seu turno, um artista plástico do Mindelo que se diz cansado de falar “destas cenas”. No seu caso, tenta pintar retratos de famílias desalojadas, instalações com escombros reais. “É arte, mas também é grito”, disse.

Autoridades entre promessas e pressão

Refira-se que durante a inauguração do terminal, em Junho, o primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva declarou que “a obra constitui um grande empreendimento ao serviço da economia de São Vicente e do país, com o impacto que queremos, e que vai ter, no crescimento económico, na dinamização da economia local, no sector do turismo e no emprego”. A Câmara Municipal e outras autoridades e agentes alinharam todos com este discurso de otimismo.

Três meses depois, e ainda sob os efeitos da destruição da tempestade de 11 de Agosto, o entusiasmo institucional não convence todos os mindelenses. “Pronta para quê? Para mostrar fachadas pintadas enquanto os bairros continuam sem saneamento?”, questiona José Lima, morador de Fonte Francês, onde as águas arrastaram muros e memórias.

A comunidade que não espera

Enquanto o poder hesita, a comunidade age. Em bairros como Ribeira Bote, grupos de jovens organizam mutirões para limpar ruas, reconstruir escadarias e orientar turistas. Guias locais adaptam os percursos para incluir histórias de resistência. E há quem transforme a dor em narrativa.

“Conto aos visitantes como a minha casa foi invadida pela água. Mostro fotos. Eles ficam chocados, mas também comovidos. E compram mais, não por pena, mas por respeito, por solidariedade”, diz Lúcia Fernandes, artesã e mãe de três filhos. Para ela, oxalá venham outros navios cruzeiros e possa, então, contar outras histórias menos tristes e dramáticas.

João A. do Rosário e Inforpress

Publicado na Edição 944 do Jornal A Nação, de 02 de Outubro de 2025

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