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Cabo Verde o país do “mais ou menos” e da tolerância ao incumprimento

Por: João Serra*

Estudei e vivi mais de dez anos na Alemanha e sou um grande apreciador e seguidor da sua cultura de convivência social e de trabalho, particularmente no que diz respeito à pontualidade, ao cumprimento da palavra dada, ao rigor e ao profissionalismo.

Considerada o país mais rico da Europa e a terceira economia mundial, a Alemanha é uma potência europeia com forte influência política, económica e cultural, destacando- -se pela sua engenharia de precisão, inovação industrial e compromisso com a sustentabilidade. Entre os vários fatores que podem ser apontados como causa desse sucesso, destaca-se, em primeiríssimo lugar, o elevado nível de produtividade.

Uma cultura muito positiva e autofavorecedora, que se estende às organizações, explica parte do “milagre germânico”. Os alemães, geralmente, são confiantes, não se prendem a convenções sociais e veem a vida pelo lado prático. Além disso, possuem uma mentalidade que os beneficia, particularmente no trabalho, por serem muito rigorosos, altamente profissionais e extraordinariamente produtivos.

Na Alemanha, o trabalho é mais do que uma obrigação: é um pacto social sustentado por valores de rigor, confiança e responsabilidade. O tempo é tratado como um recurso coletivo, e a pontualidade é a sua expressão mais visível. Atrasar-se cinco minutos sem aviso pode significar o cancelamento de uma reunião – não por capricho, mas porque o tempo de todos é respeitado como bem comum. Essa disciplina temporal não é vista como opressão, mas como libertação: permite jornadas curtas e uma vida pessoal plena, porque cada minuto é aproveitado com seriedade. O resultado é uma produtividade elevada, uma economia robusta e uma sociedade que se reconhece como uma das mais felizes do mundo.

Mas o que sustenta esse modelo não é apenas a pontualidade. É o valor absoluto da palavra dada. Na Alemanha, prometer é comprometer-se. Se alguém assume uma tarefa, um prazo ou um objetivo, não há margem para desculpas ou improvisos. O compromisso é cumprido porque a credibilidade individual e coletiva depende disso. O “mais ou menos” não existe, e a confiança entre pessoas e instituições constrói- -se sobre a certeza de que o que é dito será feito. Essa cultura cria um círculo virtuoso: menos burocracia, menos controlo, mais autonomia e mais responsabilidade.

Em Cabo Verde, a realidade é outra, e é preciso dizê-lo sem rodeios. A chamada “hora cabo-verdiana” tornou-se quase um símbolo nacional, mas é, na verdade, um entrave ao desenvolvimento. A tolerância ao atraso, ao improviso e ao incumprimento mina a credibilidade das instituições e compromete a sua eficácia e eficiência, perpetuando uma cultura de complacência. O tempo, em vez de ser visto como um recurso coletivo, é tratado como elástico – e essa elasticidade cobra caro: baixa produtividade, desperdício de oportunidades e uma economia que não consegue descolar ao ritmo necessário.

Mais grave ainda é a fragilidade do valor da palavra dada. Em Cabo Verde, os compromissos assumidos são muitas vezes relativizados. Promete-se sem a certeza de cumprir, adiam-se decisões, justificam- -se atrasos com naturalidade. Essa atitude, que pode parecer inofensiva no quotidiano, tem consequências devastadoras quando se trata de governação, de negócios ou de relações internacionais. A confiança, que é a base de qualquer sistema económico moderno, fica comprometida. E sem confiança não há investimento, não há estabilidade, não há progresso.

O profissionalismo alemão assenta numa ética de honestidade e transparência que dispensa controlos excessivos. O que se promete cumpre-se, e o incumprimento é exceção grave, não regra tolerada. Em Cabo Verde, de um modo geral, persiste uma cultura de desenrasque e de informalidade que fragiliza a consistência dos resultados. A meritocracia, que na Alemanha é princípio estruturante, continua a ser em Cabo Verde mais aspiração do que prática. A progressão profissional nem sempre depende do mérito, mas de redes de influência, o que gera desmotivação e reduz o incentivo à excelência.

O impacto desta diferença é visível na administração pública, onde prazos são frequentemente ignorados, processos arrastam-se e a palavra dada por um serviço ou dirigente raramente é garantia de cumprimento. Isso gera frustração nos cidadãos e descrédito nas instituições. Porém, a incapacidade de cumprir prazos previamente acordados não é um vício exclusivo dos serviços públicos. Estende-se igualmente ao setor privado, desde o mais modesto prestador de serviços – como um canalizador – até profissionais com formação superior e responsabilidades acrescidas. Trata-se, portanto, de uma falha estrutural e profundamente enraizada, que atravessa praticamente todas as esferas da sociedade cabo-verdiana. O que deveria ser exceção tornou-se hábito, e o incumprimento deixou de causar espanto para se transformar em rotina. É uma característica grave, que mina a confiança, corrói a credibilidade e compromete a produtividade nacional, ainda que subsistam algumas louváveis exceções que provam que outra atitude é possível.

É preciso sublinhar que o cumprimento da palavra dada não é apenas uma questão de ética individual, mas de competitividade nacional. Países que respeitam compromissos atraem investimento, criam confiança nos mercados e constroem instituições sólidas, enquanto aqueles que relativizam compromissos tornam-se pouco fiáveis, perdem credibilidade e ficam condenados a depender da boa vontade externa. Cabo Verde não pode aspirar a ser um país moderno e competitivo se não transformar radicalmente a sua relação com o tempo, com o rigor e com a responsabilidade.

Os cabo-verdianos são trabalhadores e resilientes quando estão fora do país, mas, dentro das suas fronteiras, enfrentam um sistema que desincentiva o mérito e normaliza a mediocridade. Esta contradição sugere que o problema não é genético nem climático, mas institucional e cultural. Falta liderança com autoridade moral para exigir resultados, avaliar desempenho e premiar quem faz a diferença. Falta também uma reforma profunda da administração pública, que substitua o carreirismo partidário pela competência técnica e introduza uma verdadeira cultura de responsabilidade. E falta, sobretudo, um compromisso coletivo com a mudança de mentalidade – uma viragem que só será possível se as novas gerações forem educadas para o valor do trabalho bem feito, para a disciplina e para o respeito pelo tempo e pelos outros.

A transformação cultural é o maior desafio de Cabo Verde. Não se trata de copiar a Alemanha, mas de aprender com ela que o desenvolvimento não nasce apenas de políticas públicas ou de investimentos externos, mas da forma como cada cidadão encara o trabalho, o tempo e os compromissos. O futuro do país dependerá da capacidade de romper com a cultura do atraso e do improviso e de construir uma sociedade em que a palavra dada seja cumprida, em que o mérito seja reconhecido e em que o tempo seja respeitado.

Praia, 1 de novembro de 2025

*Doutorado em Economia/ Blog: www.economianaserra. blogspot.com  

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