
Por: Henrique Levy*
Estas palavras assumem-se como um voto natalício de fraternidade, justiça e paz dirigido aos povos de Cabo Verde, da Madeira e dos Açores, onde a língua portuguesa não é apenas herança, mas travessia viva de memória, resistência e promessa de futuro.
Do Presépio ao Sepulcro Vazio, o Natal de Jesus responde à pergunta essencial. Quem é Deus?
Dizer Deus é tocar um mistério que antecede todas as línguas e todas as ideologias.
Antes da primeira palavra humana, já Deus soprava no silêncio primordial. As Escrituras abrem-se com esse gesto inaugural: Bereshit bara Elohim. No princípio, Deus cria. Não por carência, mas por excesso. Não por necessidade, mas por bondade.
O mundo nasce não de um déspota distante, mas de um Deus que escolhe envolver-se, comprometer-se, entrar na matéria e na história e a fé dos hebreus e dos cristãos declara-se política, ao afirmar que o universo não é propriedade dos fortes, nem a história pertence aos vencedores. A criação é dom, não conquista. E o Criador não teme a fragilidade daquilo que moldou do pó. Pelo contrário, aproxima-se dela.
O cristianismo lê este gesto criador à luz de um escândalo maior. Deus não se limitou a criar o mundo, decidiu habitá-lo. A Encarnação é um ato de solidariedade jamais concebido. O Infinito aceita os limites. A Eternidade submete-se ao tempo. O Absoluto entra na precariedade de um corpo vulnerável, numa periferia do Império, longe dos centros do poder religioso e político.
O Natal não é uma encenação piedosa. É denúncia. Deus nasce fora dos palácios. Fora dos templos. Fora dos sistemas de privilégio. Nasce pobre entre os pobres. E ao fazê-lo, declara que a dignidade humana não depende de estatuto, riqueza ou utilidade. Este Deus encarnado aprende a falar a língua dos homens, trabalha com as mãos, conhece o cansaço, a fome e o medo. Jesus vive a condição humana até ao fundo. E essa opção é profundamente libertadora.
Ao assumir a carne explorada, o Deus cristão desautoriza toda a teologia que sacraliza a desigualdade. Toda a religião que se alia ao poder contra os pobres. Toda a espiritualidade que se refugia no Céu para não sujar os pés na terra.
O Deus bíblico não é neutro. Escuta o clamor dos escravos no Egito e diz: Eu vi a aflição do meu povo… desci para o libertar (Ex 3,7-8). Descer é verbo decisivo. Descer da transcendência para a história. Descer do trono para percorrer caminhos humanos. Descer até aos crucificados de cada tempo. Para os cristãos Deus toma partido sempre a partir do mais humilde dos homens.
Mas a Encarnação não é o fim do caminho. É o início do confronto. Porque o Deus que se faz carne entra inevitavelmente em choque com as estruturas que produzem exploração, desigualdades e morte. Jesus não morre por acaso. É executado. A cruz não é um acidente espiritual. É um crime político. O corpo de Cristo é eliminado porque desestabiliza, porque anuncia um Reino onde os últimos são os primeiros, onde os famintos são saciados, onde os poderosos são questionados.
A Ressurreição surge, então, como a resposta definitiva de Deus à violência da história. Não é fuga, não é consolo abstrato. É a mais radical afirmação de justiça. Deus ressuscita o corpo para dizer que nenhuma vida descartada é irrelevante. Que nenhuma morte imposta é definitiva. Que nenhum sistema que mata terá a última palavra.
A Ressurreição é o não de Deus ao mundo organizado sobre a exploração. Sem que Deus tivesse habitado o corpo mortal, o Espírito não poderia revestir-nos de vida plena. A Páscoa começa no Presépio. A eternidade germina na fragilidade. A vida nova nasce onde o mundo só vê derrota. Por isso Paulo proclama: a morte foi engolida pela vitória (1 Cor 15,54). Não uma vitória triunfalista, mas a vitória do amor que resiste.
Entre o Presépio e o Sepulcro Vazio levanta-se a grande travessia humana, lugar de combate e de promessa, de dor e de redenção. É aí que Deus entra na História, não como soberano distante, mas como presença implicada. É aí que Deus restitui aos homens a dignidade que lhes foi roubada.
O Evangelho de Lucas diz tudo numa frase desarmada de retórica e carregada de revolução: “Não havia lugar para eles na estalagem.” (Lc 2,7). Este versículo é a chave do Natal. Deus nasce onde não há lugar. Fora dos centros. Longe dos palácios. À margem da segurança e do prestígio. A sua primeira morada não é o templo nem o trono, mas o curral. Não é a cidade alta, mas a periferia. Não é o conforto, mas a precariedade. Assim se revela que Deus é aquele que escolhe o chão dos pobres como casa. A exclusão como ponto de partida. A fragilidade como linguagem.
O Natal não é um episódio piedoso da história religiosa. É um acontecimento político no sentido mais profundo. Deus toma partido. Entra no mundo pela porta dos sem-lugar para que nenhum ser humano volte a ser condenado à invisibilidade.
Ao nascer, Jesus restaura o nome do Homem. Proclama que cada vida conta, que cada corpo importa, que nenhum destino está definitivamente perdido. O Deus feito criança recusa toda a lógica de dominação e inaugura outra ordem ao serviço da proximidade, da justiça que se constrói a partir de baixo.
O Presépio é já a denúncia de um mundo que exclui e o anúncio de um mundo novo que começa.
Celebrar o Natal é aceitar esta subversão luminosa. É reconhecer que Deus não vem reforçar poderes, mas desinstalá-los. Não vem legitimar desigualdades, mas derrubá-las. Não vem salvar ideias abstratas, mas pessoas concretas.
O Filho nasce pobre para que os pobres saibam que Deus lhes pertence. Nasce vulnerável para que ninguém confunda a força com violência. Nasce fora para que todos tenham lugar. E nessa noite humilde, silenciosa e ardente, a humanidade inteira é novamente erguida.
O Natal é a proclamação solene de que a dignidade humana foi restaurada, porque Deus decidiu habitá-la para sempre.
* Poeta caboverdiano, de coração madeirense a viver nos Açores



