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Quando o desalinhamento institucional gera ruído político – Cabo Verde, Guiné-Bissau e a importância da coerência democrática

Por: Jorge Lopes

O golpe de Estado na Guiné-Bissau não deixou margem para ambiguidades no plano internacional nem no posicionamento do Estado de Cabo Verde. O Presidente da República e o Primeiro-Ministro condenaram, em tempo oportuno, a rutura da ordem constitucional, reafirmando valores democráticos que o país sempre proclamou. Foi depois dessa clareza institucional que o Parlamento foi chamado a pronunciar-se – e foi aí que, de forma inesperada, surgiu um ruído político que merece reflexão serena e responsável.

O golpe de Estado na Guiné-Bissau representou uma rutura grave da ordem constitucional e um novo teste à resiliência democrática na África Ocidental. A reação da comunidade internacional foi rápida, firme e praticamente unânime. Organizações regionais e multilaterais, bem como parceiros bilaterais, condenaram sem ambiguidades qualquer tomada do poder pela força, reafirmando princípios que não admitem relativizações.

Cabo Verde, enquanto Estado, esteve à altura desse momento. O Presidente da República e o Primeiro-Ministro pronunciaram-se em tempo oportuno, com clareza política e sentido de responsabilidade, condenando o golpe, reafirmando a defesa do Estado de Direito e manifestando solidariedade com o povo guineense. A posição do Estado foi clara, coerente e alinhada com os valores democráticos que historicamente orientam a política externa cabo-verdiana.

É precisamente por isso que o episódio ocorrido no Parlamento merece reflexão. A Assembleia Nacional não foi chamada a suprir qualquer silêncio institucional. A posição do Estado já estava assumida e consolidada. Esperava-se, por isso, que o Parlamento acompanhasse, reforçasse ou, no mínimo, não fragilizasse esse posicionamento. Ao não conseguir aprovar uma resolução de condenação, acabou por introduzir um ruído político inesperado e desnecessário, revelador de um desalinhamento institucional que não beneficia a imagem externa do país.

Importa afirmá-lo sem ambiguidades: a decisão parlamentar foi legítima, democrática e soberana. Nenhum órgão de soberania está juridicamente subordinado a outro. Contudo, a legitimidade formal não esgota a responsabilidade política, sobretudo quando estão em causa valores estruturantes como a democracia, o respeito pela vontade popular e a rejeição inequívoca da violência como meio de acesso ao poder.

As declarações de voto ajudam a compreender o contexto. O PAICV sublinhou a dimensão ética, humanista e pedagógica de um pronunciamento parlamentar, entendendo-o como um gesto de solidariedade democrática para com um país irmão. A UCID reafirmou, de forma coerente, a rejeição de qualquer tomada do poder pela força. Já o MpD invocou argumentos de soberania, prudência institucional e ausência de precedentes, defendendo que o Parlamento não deveria pronunciar-se sobre assuntos internos de outro Estado.

Esses argumentos merecem consideração, mas não estão isentos de crítica. A defesa da soberania não impede a condenação política de golpes de Estado, como demonstra a prática internacional e regional. A prudência institucional é uma virtude, mas pode transformar-se em retração excessiva quando conduz à ambiguidade em matérias essenciais. E a inexistência de precedentes não deve servir de justificação para abdicar de um gesto politicamente relevante quando o contexto o exige.

O ponto mais sensível reside, contudo, no desalinhamento entre órgãos de soberania. O Primeiro-Ministro, enquanto Chefe do Governo, condenou o golpe e apoiou as iniciativas regionais. O partido de que é líder determinou, no Parlamento, a reprovação da resolução que condenaria o golpe. Esta dissonância não configura qualquer ilegalidade, mas fragiliza a perceção de coerência institucional do Estado cabo-verdiano, sobretudo num dossier marcado por profundas ligações históricas, políticas e afetivas com a Guiné-Bissau.

À procura de compreender  este posicionamento, podem avançar-se várias hipóteses: uma leitura excessivamente formalista da soberania; o receio de instrumentalização político-partidária; a confusão entre o papel diplomático do Executivo e a função simbólica do Parlamento; a fadiga regional face à repetição de golpes; ou simples cálculo político conjuntural. Compreender estas razões não significa aceitá-las, mas permite enquadrar o debate com serenidade e rigor.

O essencial, porém, permanece. Quando o Estado fala com clareza em defesa da democracia, espera-se que os seus órgãos de soberania reforcem essa voz ou, pelo menos, não a fragilizem. O problema não foi a ausência de posicionamento do Estado, mas a incapacidade do Parlamento de acrescentar coerência, densidade e sentido histórico a uma posição já assumida.

A democracia não se afirma apenas quando é ameaçada internamente. Revela-se, sobretudo, quando não hesita em condenar a sua negação, onde quer que ela ocorra. Cabo Verde tem autoridade moral para o fazer. Preservá-la exige coerência institucional e a consciência de que, em determinados momentos, o ruído político pesa mais do que o silêncio — e muito mais do que a clareza.

Num contexto regional marcado por sucessivas ruturas constitucionais, o papel dos parlamentos nacionais adquire uma relevância acrescida. Não apenas como instâncias deliberativas internas, mas também como espaços de afirmação simbólica de valores que transcendem fronteiras. Em democracias consolidadas, a palavra parlamentar projeta-se para além do hemiciclo e contribui para a construção de normas políticas partilhadas, sobretudo em regiões onde essas normas são frequentemente postas à prova.

No caso concreto, não se exigia ao Parlamento cabo-verdiano um gesto de intervenção nem de ingerência nos assuntos internos da Guiné-Bissau. Bastaria um sinal político claro, alinhado com a posição do Estado e com a prática reiterada da comunidade internacional, reafirmando princípios que Cabo Verde tem defendido com consistência ao longo da sua história democrática. A ausência desse sinal não compromete a democracia interna, mas limita o alcance externo da mensagem política do país.

Acresce que, para um Estado com o capital simbólico de Cabo Verde – frequentemente citado como exemplo de estabilidade, moderação e maturidade institucional na África Ocidental – a coerência entre órgãos de soberania não é um detalhe menor. É parte integrante da sua credibilidade. Sempre que essa coerência é fragilizada, mesmo que de forma involuntária, perde-se parte da força moral que sustenta a sua voz nos fóruns regionais e internacionais.

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