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Talento

Desencontro

É a segunda vez que encontro a Clara e ela volta a dizer-me que está de novo a sair e a curar-se de uma crise amorosa que a inibe completamente de prestar qualquer atenção a todas as palavras de encantamento com que desde há bocado estou a tentar seduzi-la. Caramba, acabo por exasperar no empenho de a convencer, faz um esforço honesto e carinhoso, lembra-te que há dois anos atrás tínhamos passado pela mesma desagradável situação, começa a ser aborrecidamente repetitivo, para além de estarmos a perder a oportunidade de namorar num dos sítio mais belos com que Deus dotou Portugal.
Ela fica a observar-me pensativa durante um bom pedaço: Suponhamos que podes ter razão, acaba por dizer, mas e tu, que pretendes realmente de mim que seja diferente do que os outros não me deram? Namorar-te, respondo humilde e rápido, apenas namorar-te, sem promessas, nem juras de amor eterno ou seja o que for, apenas namorar-te. Da outra vez falhámos por pouco, tivesse ficado mais um dia nesta cidade com tempo para te levar ao Monte de Santa Luzia ou à Sé Catedral, e não terias conseguido escapar por entre as teias dos meus sonhos. O quê, espanta-se ela, mais parece uma armadilha! Mas depois acrescenta: mas vamos admitir que aceito namorar-te, quanto tempo achas que duraria?, se calhar nem uma semana! Pessoalmente eu acharia esse um tempo razoável, uma semana, respondo, sobretudo porque é o tempo que vamos ficar por cá, porém, se achas que é muito, também podemos encurtar, podemos reduzir para só três dias, deve dar para nos enfastiarmos um do outro.
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Clara fica duvidosa entre rir e mostrar-se ofendida: Ah os homens, exclama, só querem uma coisa, são todos iguais, não há nada a fazer com vocês! E que querem eles realmente, pergunto inocente. Sabes perfeitamente! Bem, atrevo-me a dizer, se estamos a pensar o mesmo, sem dúvida que eles têm razão, realmente estás o que eufemísticamente se poderia chamar um pedação de mulher, o tempo parece não passar por ti, como diz um amigo meu, se fosses uma garrafa de aguardente….
Ela ri-se agora com descaramento: Não é para a tua boca, acaba por dizer, não estás a provar merecer-me. Não estranho, respondo, mas também não era propriamente para meter na boca que eu estou a imaginar… Cuidado, tapa-me a boca com as mãos, não caias na ordinarice, diz, não gosto, ofende-me!
Não quero cair na ordinarice, não senhor, ainda que seja verdade que esteja a sentir-me francamente frustrado, eu tinha aceite esse segundo convite tão cheio de intenções maliciosas!
A Clara e eu conhecemo-nos na praça da República, melhor dizendo, tínhamos começado por nos vermos ali, junto ao Chafariz que ela, sem me conhecer de lado algum, debitou-me como sendo dos meados do século XVI e da autoria de um fulano, um Lopes qualquer cujo primeiro nome já não me lembro. Uma bela peça, disse como se cantasse uma lição de guia turístico, faça-me uma foto junto dela.
Tomei-lhe a máquina. Clara era, e ainda é, uma rapariga de uma alegria espontânea, e apesar do estado de luto em que me disse se encontrar até limpar do espírito as marcas deixadas por um namorado traidor, abriu-se num largo e quase exagerado sorriso para a objectiva, de modo que achei que poderia consumir ao seu serviço um bom bocado do tempo de que dispunha até à hora do almoço.
Desencontro_1
Eu estava em Viana do Castelo desde o dia anterior, convidado para apresentar um livro na feira que ia ter início naquela tarde. E no fim da esforçada sessão fotográfica em que lhe sugeri diversas e bonitas poses, já finalmente tínhamos trocado nomes e países, eu Fernando C., ela Clara S., de modo que disse-lhe, Clara, toda a actividade física provoca em mim uma vontade inelutável de beber algo, que tal procurarmos uma explanada para um copo de alvarinho seguido de aprofundamento deste inesperado, porém agradável encontro?
Clara concordou, o calor apertava. E iremos aonde, tem alguma ideia, perguntei. Ela puxou da mochila donde retirou um guia do american express “Norte de Portugal e Galiza” e abriu-o algures. Assobiei: Uau!, eu nunca me lembro de usar essas cábulas, mas afinal sempre dão jeito. Se dão, disse enquanto percorria uma página com o dedo: Se a lógica não é uma batata, raciocinou em voz alta, estando nós como estamos na praça da República, quer dizer que somos vizinhos do Beco dos Fornos. Ora aqui diz que ali podemos encontrar um local bem festivo com o engraçado nome de “Os três potes”. Copos à vontade e também boa comida regional, adoro rojões com papas de sarrabulho. Não foi difícil encontrar o beco e o restaurante onde nos instalamos sob um toldo. Se o vinho for mau, a comida tem poucas hipóteses de ser boa, disse-lhe, por isso, como teste preliminar, comecemos por pedir um jarro de branco. Algumas tapas serão certamente bem vindas, vamos deixar que seja o empregado a sugerir.
Sem saber o que eu fazia passeando pelas ruas de Viana do Castelo, Clara começou por contar-me que estava ali não só mas também em serviço. Era jornalista free lancer e uma revista francesa tinha-lhe pedido uma reportagem sobre a romaria da Senhora da Agonia. O convite tinha caído do céu e estava a aproveitar para ficar durante a semana completa dos festejos. Em gozo de férias, perguntei. Não propriamente, apenas metendo distância entre ela e uma situação desagradável.
Aposto em como essa maluca vai arranjar maneira de me contar os seus desaires amorosos que não estou interessado em ouvir. Olhava para a Clara e dizia para mim próprio, se ela fosse uma daquelas raparigas sem muitos macaquinhos na cabeça, a gente almoçaria aqui tranquilamente, depois iríamos descansar no hotel e aí seria o que Deus quisesse…
Como se tivesse adivinhado os meus pensamentos, Clara começou a dizer o quanto se sentia grata por nos termos cruzado. Porque eu não fazia ideia do estado de espírito em que se encontrava desde há uns dias a essa parte. De tal maneira que quando recebeu o convite para ir assistir as festas da Senhora da Agonia logo pensou, Aceito sim senhor, na agonia em que estou a viver, ninguém melhor do que eu para falar da festa da Senhora da Agonia.
Eu bebia devagar o vinho verde que nos tinham trazido, trincando os chourições, os enchidos, as pataniscas e o pão fresco, ao mesmo tempo que tentava acompanhar esse raciocínio que me parecia agora arrevesado. O namorado deixou-a, acabei por perguntar, na esperança de isso ser falso. Ela olhou-me serena: Pior!, disse por fim. Bebi: pior do que isso não imagino o que possa ser… Morreu? Imagine, imagine, insistiu ela, você parece um homem inteligente, ele não morreu, foi pior… E a propósito, Fernando, o que faz você aqui, pois vê-se a léguas que não é daqui e também não tem ares de turista. Vim para a feira, respondi sem pressas, apresentar um livro. Seu? Sim, meu! Eu logo vi, você é escritor. Se prefere chamar-me assim! Então o que é que pode ser mais, se escreveu um livro e está aqui para o apresentar? Bem, escrever um livro não faz de nós escritores, mas prefiro saber o que fez de tão mau o seu namorado, a ponto de a deixar em estado de agonia. Encontrei-a com outra, disse dramática. Eu fiquei calado e ela continuou: com a minha melhor amiga, na minha cama!
Continuei a beber: E zangou-se dessa forma que está a dizer só por uma coisa dessas, perguntei por fim. Ela saltou da cadeira: E acha pouco, exclamou. Não acho nem pouco nem muito, disse encolhendo os ombros, o que acho é que a sua reacção de o abandonar só por isso foi no mínimo infantil. Espera, disse ela, acho que não percebeu o que eu disse, vou repetir: encontrei o meu namorado, com a minha melhor amiga, deitados na minha cama, percebeu agora? Já tinha percebido, e nem vou perguntar se estavam dormidos ou se estavam a amar, concluo que estavam embrulhados um no outro, mas continuo a não entender a sua reacção, quer dizer que preferia que ele tivesse ido com uma estranha? E havendo na casa uma cama, preferia saber o seu namorado e a sua melhor amiga deitados na alcatifa, só para lhe poupar a cama, uma peça de mobília que se troca com mais frequência do que a necessária?
Ela olhava-me incrédula: Mas não pode estar a falar a sério, disse por fim! Então porquê, perguntei. Mas então não está a ver? O meu namorado, com a minha amiga, na minha casa, na minha cama!
Sorri: Há uma forte e irracional tendência social para se funcionar contra o que é mais natural e humano, disse-lhe, repare que, depois de si, em princípio a sua melhor amiga é a pessoa que está mais próxima do seu namorado. É portanto normal serem amigos. Porém, são heterossexuais e não são irmãos, portanto sentirem-se atraídos faz parte da natureza humana, e a partir desse momento, fazerem amor ou não é pormenor, virtualmente já estiveram juntos se calhar centenas de vezes, sem que tenham posto em causa, quer o amor do namorado quer a amizade da amiga.
Clara estava estupefacta: Está a dizer-me que acharia normal eu ir para a cama com o melhor amigo dele, perguntou desafiadora. Sim, respondi calmo, desde que tenha desejado estar com o melhor amigo dele, claro, e também desde que se previna bem com questões de horários e o resto, no caso do seu namorado, ou ele não foi suficientemente cuidadoso, o que mostra alguma negligência, ou então você apareceu inesperadamente, o que é um descuido imperdoável e acaba por lançar sobre si todas as culpas pela incómoda situação e consequente final do namoro, deixe que lhe diga honestamente.
 
Desencontro_2
Clara parecia querer explodir de impotência: não sei se você é apenas cínico ou se também é insólito, disse, vamos antes nos rojões com papas de sarrabulho, a menos que prefira ficar no nosso bacalhau, esse pelo menos é sempre fiel. Eu proporia antes uma vaquinha, sugeri, assim pelo menos acabará por dividir alguma coisa, já que namorado está interdito.
Ela sorriu sem responder. Porém, no fim do almoço disse peremptória, A conta eu divido consigo! Já é um começo, respondi, se quiser, e tendo em conta que já começou, até que podemos continuar a dividir mais coisas, disse eu a sondar o terreno. Como por exemplo? É uma ideia minha, avancei, depois deste lauto almoço, se quiser, até que poderíamos dividir por um pedaço de tempo, mais propriamente, pelo resto desta tarde luminosa e calorenta, a larga cama no meu hotel, como vê eu não sou egoísta, o lugar é nobre, tem ar condicionado, continuaríamos esta agradável conversa, no fim até era capaz de telefonar ao namorado a pedir desculpas pela sua impetuosidade.
Mas pela primeira vez Clara sorriu com tristeza: Não, desculpe, mas ainda estou de luto, ainda sinto a morte na alma. Paciência, lamentei, vou acreditar que há mais marés que marinheiros porque gostaria de voltar a encontrá-la.
E passados dois anos ali a tenho de novo e de novo a sair de uma desilusão amorosa. Está bem, digo-lhe, não caio na ordinarice, mas ao menos diz o que aconteceu desta vez, ou é uma nova amiga? Não, desta vez foi diferente, só dois meses depois de estarmos juntos ele se lembrou, assim muito por acaso, de me dizer que é casado. Demo-nos tão bem, tão harmoniosamente, que um dia lhe disse, quase a brincar, se não achava que valia a pena pensarmos num futuro mais sólido. Ele disse que sim, o parvo, disse que gostaria muito, porém era um bocado complicado porque é casado. És casado e nunca me disseste, perguntei. Bem, nunca perguntaste, não achei que fosse coisa que te interessasse, dizias que não precisávamos saber nada um do outro, que era só para curtir! Curtir com um homem casado e curtir com um homem solteiro são coisas bem diferentes, disse-lhe, mas ele disse que não, que é a mesma coisa, e na melhor das hipóteses os casados não só têm mais experiência de vida como também chateiam menos as namoradas.
Fico meditativo digerindo aquele transtorno, tinha ido a pensar na Clara. Tenho que reconhecer que é um ponto em que esse fulano tem toda razão, digo-lhe, mas o que estou a ver é que no meio desse drama todo, o único prejudicado sou eu, eu o inocente. Coitadinho, ri-se ela dando-me o braço, nem vou perguntar se também és casado, não quero saber de mais desilusões, vamos antes visitar o Museu do Trajo, depois iremos ver a rua do tapete das flores. Deus é grande, penso enquanto a levo pela mão, a esperança é a última a morrer, tenho muita fé na Senhora da Agonia e também na beleza mágica do Monte de Santa Luzia, quem sabe se um milagre não está já em pleno processo de maturação.
Germano Almeida

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