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Opinião

Ainda sobre o nosso ensino e a mania dos títulos

Arsénio Fermino de Pina*
Já chegaram a perguntar-me se sou ou pretendo ser político, o que não sou nem nunca pretendi ser, embora, por vezes, faça política no sentido de intervenção no espaço público, onde algumas pessoas me reconhecem. Como gosto de ler, sendo médico terceiro-mundista,  observo para colher elementos que me permitam fazer diagnósticos e entender o que se passa com as pessoas e o mundo, e isso leva-me a escrever sobre várias matérias. Ao ler a Dra Ondina Ferreira num dos últimos números do Terra Nova, senti necessidade de corroborar o que escreveu sobre o ensino, os estudantes e professores em Cabo Verde.
Com a independência democratizou-se imenso o ensino, primário e secundário, na luta contra a iliteracia, oferecendo oportunidades a todos para obterem uma ferramenta mental e técnica necessária para vencer os problemas da vida. Acabou-se praticamente com o analfabetismo; porém, devido ao avultado número de alunos, e de escolas e liceus criados, a qualidade deteriorou-se a olhos vistos, agravada com a escassez de professores qualificados e ao excesso de liceus, quando se deveria ter investido mais, sobretudo em cursos técnico-profissionais, como observou René Dumond aquando da sua visita a Cabo Verde. Segundo esse engenheiro agrónomo, conhecedor profundo do Terceiro Mundo e autor do famoso livro A África Começa Mal, que todos os nacionalistas da minha geração leram, o subdesenvolvimento vence-se investindo em escolas técnico-profissionais; realmente, quem sai de uma escola técnica é imediatamente produtivo e útil a si próprio e ao país por possuir uma técnica, um ofício, uma arte e profissão, o que não acontece a quem termina o liceu, por este ser uma passada para a universidade, a que poucos podem aceder; estes poderão ser funcionários públicos ou empregados de escritórios e lojas comerciais, com recurso a conhecimentos adquiridos, embora mal adaptados às funções a que se candidatam, quando não podem prosseguir os estudos.
Infelizmente, continuou-se a insistir no número e não na qualidade do ensino, o que redundou no seu agravamento, tanto do ensino primário como secundário, quando se deveria ter avaliado a sua qualidade para eventual reorientação ou mudança de política visando a melhoria da sua qualidade, priorizando maior investimento nos cursos técnico-profissionais de muito maior utilidade para o país.
O nosso ensino anterior ministrado em Cabo Verde, primário e secundário, e superior, em Portugal, era de excelente qualidade, graças à existência, em Cabo Verde, de professores formados no Seminário-Liceu de S. Nicolau, com professores competentíssimos e exigentes, geralmente cónegos, como contributo da Igreja Católica ao ensino cabo-verdiano, permitindo o aparecimento posterior de liceus, dos Pré-claridosos, Claridosos, da nova geração conhecida como Nova Largada, etc., e de professores que serviram tanto no ensino primário como no secundário. Devemos ter a coragem para, sem complexos, reconhecer o contributo português no passado e mesmo actualmente, porque Portugal é dos países que mais cooperam connosco, e até nos vem facultando ajuda orçamental regularmente. Dos liceus Gil Eanes e Adriano Moreira saíram alunos que se formaram nas universidades portuguesas e regressaram, garantindo a continuidade da qualidade do ensino, basicamente à custa de professores nacionais, além de outros quadros superiores: médicos, engenheiros e juristas. Das ex-colónias portuguesas, Cabo Verde foi a única em que os quadros médios e superiores eram, no tempo colonial, maioritariamente autóctones, tendo, inclusive excedentes que foram trabalhar noutras colónias, em Portugal e noutros países.
Sem avaliação do ensino nem grandes preocupações quanto à sua qualidade, resolveu-se dar um grande salto em frente, uma autêntica concluta no vazio, com a criação de universidades, à semelhança de Portugal no pós 25 de Abril, à base de universidades privadas com inúmeros cursos cujas profissões nem existem entre nós ou de pouco interesse para o país. Actualmente, estamos com dez “universidades” (as aspas subentendem-se) e promessas de mais, para uma população de 500.000 habitantes, sendo uma pública com dois polos, e as restantes privadas. Já me pronunciei sobre elas, pelo que não irei deter-me muito sobre o assunto. Quero simplesmente lembrar aos distraídos e populistas que uma universidade tem exigências de rigor, não respeitadas entre nós, que não se conformam com improvisações – instalações adequadas às suas funções, doutorados em número exigido pelas normas académicas, condições para a investigação, laboratórios, bibliotecas, etc. Não devem ser objectivos das universidades cobrir todas os campos científicos. Há que fazer escolhas em função das prioridades do país, que nos faltou assumir claramente. Podem ser opções dolorosas por isso significar atribuir menos prioridade, logo, menos financiamento e apoio a alguns sectores e cursos de menos interesse, ou cujas profissões são raras ou inexistentes no país, razão por que deve haver um plano estratégico muito bem estabelecido, o que também nunca existiu.
Devido a falhas e precipitações, algumas das nossas “universidades” têm à frente gente a quem faltam qualidades desejáveis para os cargos que desempenham. Algumas delas deveriam ser ensino politécnico, o que contribuiria para se perder a mania e a obsessão de títulos – doutores para aqui, engenheiros para acolá, alguns até da mula ruça, letrados que pontapeiam a língua portuguesa. Se se precisar de um técnico capaz, de um electricista, um mecânico, um torneiro-mecânico, um carpinteiro, um marceneiro ou um ourives, temos sérias dificuldades em encontrar alguém detentor dessa arte ou ofício e teremos de os ir procurar entre os velhos da antiga Escola da Pontinha do Mestre Cunco, ou entre os do início das actividades da Escola Técnica do Mindelo, dado que a actual Escola parece-se com liceu e forma quadros mais quadrados a empregos comerciais e de escritórios; produziu até uma fornada de electricistas que nunca tiveram uma aula prática de electricidade, por falta de oficina e de material adequado. Os artífices e técnicos estão sendo formados, ainda em número reduzido pela ONG ONDS (Organização Nacional da Diáspora Solidária), a Oficina do Ti Nêné, pertencente à Igreja, que lutam com falta de verbas, e antes pelo Centro Juvenil Nhô Djunga, como expliquei em artigo recente.
Há, portanto, que arrepiar caminho: parar e avaliar o nosso ensino a fim de se tomar novo rumo. Será, seguramente, doloroso para muita gente, mas é absolutamente necessário que não continuemos a ter ilusões com as ditas “grandes vitórias” no ensino, que mais não são do que falhanços clamorosos, mormente no secundário (um indivíduo com a quarta classe antiga é capaz de baratinar alguns alunos do décimo segundo ano liceal) e universitário, com licenciados aos milhares, que estão em grande número no desemprego ou a trabalhar em cozinhas de Prê-à-Manger/Porter, em mini mercados, lojas de chineses e escritórios em actividades que nada têm a ver com o curso feito.
Temos gente capaz tanto em Cabo Verde como no exterior com isenção e competência suficientes para ajudar a dar a volta a esse processo educativo espúrio, gente com muito saber que, infelizmente, raramente é tida em devida conta e cuja participação não se pede por não serem militantes políticos comprometidos. Em tempos idos, a Administração Pública estava entregue em muitos sectores a pessoas qualificadas, mas, actualmente, alguns sectores estão a cargo de pessoas sem qualquer qualificação – daí a necessidade de tantos assessores com vencimentos mesmo obscenos num país como o nosso, cujas funções eram antes desempenhadas por directores e directores-gerais competentes – pessoas que ganharam os lugares apenas por serem militantes do partido no poder, familiares de alguém ligado ao Governo. Até se facilitou, com benefício, a aposentação de funcionários altamente qualificados, experimentados e idóneos, para poder ocupar esses lugares com amigos de confiança política. Uma lástima!
Parede (Portugal), Janeiro de 2018
*Pediatra e sócio-honorário da Adeco

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