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Opinião

Dilema e Perspectivas de uma Economia de Mercado em Cabo Verde

*Mário Alberto Pais

O atual governo mantem mesmo determinado na reorganização da economia como economia de mercado, de qualquer jeito, com sucessivas medidas impopulares, mas deve considerar que a mesma supõe a substituição de mecanismos políticos de proteção à atividade produtiva nacional pela ênfase na produtividade e na competitividade regidas por padrões internacionais, alimentados pela ideia de um preço único para os produtos. A exposição da economia nacional tem provocado, além da eventual destruição de setores inteiros dessa economia e da diminuição da oferta de empregos, uma adequação muito mais defensiva dos setores produtivos do que a abertura de um processo modernizador e expansivo característico de países mais desenvolvidos. Nesses movimentos de ajustes estruturais da economia, as oposições, os opositores e críticos tendem a se multiplicar, complicando o processo de transição e gerando uma indagação, que passamos a sintetizar: a) como é possível diminuir o número de oposições, opositores e críticos relevantes na economia nacional, supondo os efeitos destrutivos da economia; b) a natural reação defensiva de setores relevantes das economias nacionais; c) a diminuição do número de postos de trabalho presente tanto na estratégia defensiva quanto na eventual adoção de padrões tecnológicos e competitivos próprios dos países mais desenvolvidos?

Se essa questão possui uma aplicação óbvia aos interesses mais poderosos e visíveis, não pode deixar de incluir um outro ponto de vista, que oferece peso específico à dimensão da política e à ação do Estado como produtores de incorporação social. Esta procura persistente da forma concreta da questão da justiça e da eficácia da democracia propícia, no caso, um forte processo de incorporação social ou de desconcentração de riqueza.

Num país como Cabo Verde onde as transformações sociais produzem a percepção e o sentimento de estabilidade são substituídos pela sensação justamente oposta, isto é, de que nada é certo no futuro imediato. Nessas circunstâncias, o jogo político perde a sua característica intertemporal, precisamente pela incerteza quanto ao futuro. Os atores políticos radicalizam sua aposta no presente ou passam a desprezar a dimensão política pública da democracia. Diante disso, uma outra pergunta deve ser adicionda à anterior: como manter a democracia como jogo intertemporal em condições concretas de mudanças sociais e de incerteza quanto ao futuro?

A questão é fundamental, pois a justiça e a eficácia do regime democrático, principalmente em condições de transição económica e social, pode implicar a violação de interesses relevantes presentes na sociedade. Instituições que protegem todos os interesses não constituem um quadro de referência adequado para suportar grandes mudanças económicas, confirmando que a justiça e a eficácia, na maioria das vezes, não sustentam a democracia como um estado de equilíbrio entre estratégias descentralizadas dos atores políticos relevantes. Neste caso, em que condições a democracia pode ser justa e eficaz, mesmo negando-se como expressão de equilíbrio, ao mesmo tempo que estável? Mesmo que o ponto de chegada das alterações possa contemplar uma melhoria sensível na situação de todos, o processo de ajuste implica sempre a curva de transição que distribui desigualmente a cota de sacrifícios entre setores expressivos da sociedade. A questão é, portanto, porque esses setores sociais seriam levados a aceitar os prejuízos de curto e médio prazo, sem tentar afetar a forma e ritmo das mudanças ou investir contra as formas de organização do poder na sociedade. O projeto do presente governo, embora contemple ações emergenciais de peso contra a miséria e a exclusão, supõe o desenvolvimento do mercado como a principal agência de socialização e de incorporação social, principalmente por meio de geração de empregos. Considerando, por qualquer ângulo, o inconcluso processo de incorporação social ou de desconcentração de riqueza entre nós, uma pergunta particular deve ser adicionada às outras: em que condições os processos de ajustes estruturais da economia, em um mercado limitado como o nosso, ou em um mercado em expansão e poupador de mão-de-obra, podem significar e propiciar um efectivo processo de incorporação social?

De forma mais clara: a história específica tem mostrado que a nossa unidade territorial resulta muito mais da política do que da integração económica. Nesta perspectiva, como seria possível à aposta na diminuição do papel da política e da ação do Estado produzir mecanismos tipicamente económico de integração em um país que, por natureza, heterogêneo e complexo, reduzindo as desigualdades e assimetrias regionais hoje existentes?

Por outro lado, duas têm sido as estratégicas básicas de inserção dos países mais atrasados e considerados de desenvolvimento médio no processo de globalização económica em curso: uma inserção passiva, sem consideração pelos custos internos de adaptação, e uma outra estratégia “seletiva” em que a direção do processo incorpora de forma relevante a questão nacional. Apesar de todos os sobressaltos que sempre vivemos, Cabo Verde tem pautado, mesmo que de forma errática, pela segunda alternativa. Ora, o projeto de reestruturação económica busca substituir o nosso “capitalismo politicamente orientado” por uma economia comandada pela lógica de mercado, entendido como o mecanismo racional por excelência para alocação de recursos. A questão aqui é como compatibilizar uma lógica de mercado, “racional” em um sentido específico, com algo “irracional” como a nação. Ou seja, como atribuir a uma economia de mercado, livre e desregulada, a responsabilidade por uma estratégia “seletiva” de integração à economia mundial, supondo como relevante a nação.

Finalmente, a última grande questão: como compatibilizar reformas políticas que urgem fazer e ajustes estruturais na economia de tal modo que produza mútua alimentação? O pensamento neoliberal tem sustentado, sem comprovações empíricas suficientes, que a adoção de uma economia de mercado conspira para o fortalecimento das instituições democráticas. A literatura menos programática trabalha com outra perceção: para grande parte dos autores, a ênfase na manutenção e ampliação das instituições democráticas tende a reduzir o ritmo dos ajustes estruturais na economia, prolongando a curva de transição e tornando mais díficil o alcance do ponto de chegada ao longo do tempo. Por outro lado, a ênfase nas reformas estruturais tende a atropelar as instituições democráticas, rompemdo o equilíbrio do que deveria organizar um círculo virtuoso.

O facto é que a manutenção da democracia entre nós, com armação legal existente, tende a produzir um mundo político opaco e espesso, feito de atraso e vontade de modernizar, de puro interesse privado e de interesse público, povoado de indivíduos os mais diversos e contraditórios. A dimensão da política assim “organizada” é resistente a racionalidades transparentes e ordenadas, a soluções que carregam dentro de si uma lógica de rijeza com a ambição de retificar de modo completo a vida nacional. Provavelmente a hipótese de ponto de chegada é menos importante do que a necessidade sistemática de mudanças por adaptações que nem sempre são criativas ou felizes.

O atual governo prometeu durante campanha mudar o país de qualquer jeito submetendo-se a duas premissas: uma mais estrutural – a permanência e consolidação da democracia entre nós – e outra mais conjuntural – a estabilidade económica. Esta última é o recurso imprescíndivel disponível para reduzir incertezas quanto ao futuro que é a marca deste governo com pouco mais de dois anos de governação perante a população. As reformas pretendidas só ganham legitimidade real e adesão popular se não tocarem na estabilidade social, ou seja, só serão efetivamente aceites se se organizarem como desdobramento da estabilidade económica. A margem de manobra do governo amplia-se somente se conseguir propiciar um crescimento económico desejado, consistente com estabilidade no geral, diminuindo as oposições, opositores e as críticas.

Embora a economia se encontra preparada para crescer, a velocidade deste crescimento e a natureza do modo de acumulação estão condicionadas aos movimentos da economia internacional. Um afluxo considerável de recursos externos, não especulativos, seguramente favorecerá um crescimento mais rápido e a adoção de mudanças favoráveis à perseguição de uma economia de mercado. A diminuíção de recursos internacionais obrigará o governo a adotar uma política de crescimento apoiado em recursos e fatores internos, mantida a busca de reestruturação económica na direção de um mercado mais livre, e com um ritmo menos intenso de expansão. Em ambos os casos, é pouco provável que o governo consiga escapar do que a literatura tem denominado de “paradoxo ortodoxo”, ou seja, um extremo ativismo do Estado na tentativa de estruturar uma economia de mercado com crescimento económico.

Aliada a intenção explícita do governo de propiciar um crescimento com “ordem”. Com este ciclo de crescimento, o que este governo pretende com a política económica em curso não se assemelha à estratégia de “fuga para a frente” como um recurso básico utilizado pelos chamados governos desenvolvimentistas. O objetivo parece ser o de se conseguir um crescimento ordenado, muito mais ao estilo europeu do que norte-americano. Crescimento com ordem significa dotar o país e o Estado de capacidade para imaginar e perseguir projetos de longo alcance, para além da própria posição visualizada no paradoxo ortodoxo.

De certa forma, mesmo redimensionado e com funções estratégicas renovadas, o Estado continuará fundamental e relevante para proteger não apenas as regras do mercado, mas o próprio mercado, atuando fortemente em fatores sistêmicos decisivos. E aqui, uma outra característica estará conspirando para a manutenção da relevância do Estado e da própria política. Qualquer tentativa de se alcançar uma economia competitiva de mercado implicará um conjunto de reformas destinadas a reestruturar os sistemas de proteção ao trabalho e de qualificação, adequando este último às exigências dos novos padrões tecnológicos. Fundamental, portanto, não será a diminuição do aparelho estatal, mas a recuperação do Estado como recurso concreto de poder para a sociedade e para a economia. Crescimento com estabilidade e ordem sem o Estado – ou com um Estado mínimo – é pura miragem em uma economia e sociedade pequena, heterogênea e complexa como a nossa. E, certamente, a própria dinâmica da política, mantendo-se premissa do jogo democrático, fará desaparecer a pureza do projeto anunciado em campanha. Os projetos delineados e desenhados dentro do partido com os consensos de campanha, retoricamente foram construídos através de várias visões diferentes, só que agora, dissolvem-se também de forma natural no momento de implementação dessas mesmas reformas, porquê? Neste momento, o governo será obrigado a negociar de modo permanente e sistemático, tanto com sujeitos da política como com os atores da própria sociedade, buscando ao máximo a aproximação com o nível de consenso manisfestado na campanha. O resultado dessas negociações, incerto por natureza, descaracteriza qualquer ortodoxia. Traduzirá acordos entre interesses e agentes diferentes, procurando preservar a relevância do jogo político na definição das reformas que se pretende e de seus limites, obrigando o governo a um real exercício de pragmatismo.

Todavia, o projeto anunciado durante a campanha, foi engavetado durante mais de dois anos de governação. O significado mais provável do governo deverá ser o de nos aproximar de modo célere de qualquer “ponto de chegada” de estilo liberal, mas não de eliminar todos os benefícios obtidos para um novo ciclo de crescimento, devolvendo-nos o movimento como o traço fundamental da nossa História. Com ciclo de crescimento cujas características possuem como requisito uma intervenção decisiva na ordem social, visando a redução da miséria e da desigualdade são cada vez mais notáveis. Ao que tudo indica, a atuação do governo vai estar presa ao seguinte teorema: o jogo democrático e as negociações com atores políticos acabarão por desfigurar a identidade plena do conjunto das reformas, mas as reformas necessárias e possíveis certamente darão mais eficácia e sustentabilidade à democracia. O que será um belo resultado.

 

*(Licenciado em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, Brasil)

Praia, 05.07.2018

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