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Sociedade

70 anos do desastre da Assistência: “As fomes e as suas vítimas são cobertas por uma grande amnésia colectiva”

A Universidade de Cabo Verde realiza esta quarta-feira, 20, uma jornada dedicada aos 70 Anos do Desastre da Assistência, que se assinala hoje. Um desastre que António Correia e Silva, presidente da comissão instaladora da cátedra de História & Património, defende que não pode ficar à margem da história e da memória colectiva da nação cabo-verdiana.

António Correia e Silva, historiador e presidente da comissão instaladora da cátedra de História & Património da UNI-CV, diz que a jornada de 20 de Fevereiro contém “duas exigências”, sendo a primeira de foro científico.

“É impossível compreender a trajectória do povo cabo-verdiano, ao longo dos tempos, sem estudar as fomes e as consequências que geraram no plano social, demográfico, económico e político. Por exemplo, a diáspora cabo-verdiana teria outra configuração se não tivesse havido fomes e a ameaça delas? O nacionalismo cabo-verdiano, refiro-me ao nacionalismo independentista, é largamente filho das fomes da década de 40. Apesar de algumas abordagens, a fome, enquanto objecto de conhecimento histórico, é assunto mal estudado”.

Já a segunda exigência, de natureza “mais cívica”, está ligada ao exercício do dever de memória. “As fomes e as suas vítimas são cobertas por uma grande amnésia colectiva. Ora, o papel da Universidade, mormente uma universidade que leva o nome de Cabo Verde, é romper o esquecimento, sendo sempre contra aquilo que Boaventura Sousa Santos chamou de desperdício da experiência. O Desastre de Assistência é o ápice do longo ciclo das fomes, que começa em 1580 e só termina, três séculos e meio depois, a 20 de Fevereiro de 1949”, lembra.

Censurado pelo Estado Novo

Estes e outros acontecimentos, como o facto do “desastre” ter sido objecto de uma “premeditada” censura política pelo Estado Novo, precisam de ser trazidos à luz dos nossos dias, no dizer de Correia e Silva. “Os jornais foram impedidos de reportar o evento, na sua plenitude e na sua verdade. Diria que com a queda do muro da Assistência se ergueu um muro de silêncio”.

Muro este que, na óptica daquele historiador, a Uni-CV tem “obrigação de ajudar a derrubar”. Isto, porque, desde 1949, que a fome, na “sua versão epidémica e catastrófica, desapareceu de Cabo Verde”. Sendo assim, “a jornada serve também para se comemorar os 70 anos de Cabo Verde sem fome”, mas também “honrar” a memória das vítimas. Sendo que no caso do Desastre da Assistência foram fixadas, administrativamente, em “232” (ver caixa).

Do ponto de vista estritamente académico, a Revista de Estudos Cabo-verdianos, da Uni-CV, vai publicar um número especial dedicado às fomes. Nele vai-se procurar uma abordagem pluridisciplinar, dado que foram convidados investigadores das áreas de economia, história, política, sociologia e estudos literários.

“Queremos também com estas jornadas alavancar projectos de resgate de memória das fomes, concebidos e levados a cabo pelos nossos colegas da área de multimédia e da literatura”.

Divisão da história

Questionado sobre a importância histórica do Desastre da Assistência para a compreensão da própria história de Cabo Verde, António Correia e Silva é categórico: “Enorme”. E argumenta: “O muro de Assistência divide a História de Cabo Verde em duas metades, num antes e num depois. Nenhum historiador do século XX cabo-verdiano pode ignorá-lo. Eu pessoalmente entendo que ele gerou o que chamei num artigo de tardo-colonialismo, ou mais provocativamente de social-colonialismo, um colonialismo que passou a distribuir leite nas escolas, a abrir centros de apoio às populações, dando-lhes emprego público, a subsidiar as importações, a fazer planos de mitigação da seca”, explica.

Estas caraterísticas, diz, tornaram-se mais visíveis, tanto em 1960/61, com o governador Silvino Silvério Marques, como no início da década de 70 (de 1970 a 1974), com António Lopes dos Santos, outro governador.

“É claro que o muro cai na Praia, num momento em que o mundo vive o pós 2ª Guerra Mundial, marcado pela derrota do fascismo e do nazismo, pela criação da ONU, que quer logo ter informações de territórios sob tutela colonial, pela declaração universal dos Direitos Humanos. Naquele novo contexto outro desastre deste tipo seria catastrófico para o colonialismo português que procurava resistir à nova ordem mundial saída da última Grande Guerra”.

Na prática, explica, deixa de haver “espaço político” para “acomodar” fomes em Cabo Verde. “O próprio Adriano Duarte Silva, deputado do arquipélago pela União Nacional, mostrou na Assembleia Nacional de Portugal que eram elevados os riscos da persistência da política colonial para Cabo Verde na nova conjuntura”.

Perante estes factos, António Correia e Silva acredita que a “importância histórica” do desastre da Assistência decorre da dialéctica entre a dimensão local e a internacional. “Mas creio que os resultados das investigações em curso poderão vir dizer-nos com mais propriedade da real importância do Desastre de Assistência. Espero também que, com a publicação do número especial da Revista dos Estudos Cabo-verdianos, venham à luz novos dados e novas interpretações dos factos. Todo este processo encontra-se muito pouco estudado”, elucida.

Desastre da Assistência, o que foi?

O  Desastre da Assistência deu-se a 20 de Fevereiro de 1949, na Cidade da Praia, precisamente no sítio onde fica situada hoje a sede da Cabo Verde Telecom, na Várzea. A queda do muro do edifício dos Serviços Cabo-Verdianos de Assistência aconteceu por volta do meio-dia. Matou de imediato centenas de pessoas que aguardavam pela distribuição de refeições quentes. Dados oficiais apontam para 232 vítimas, mas há quem estime que tenham sido muitos mais, no mínimo, acima de 300.

Uma  tragédia que está fortemente associada ao período de seca que as ilhas de Cabo Verde atravessava e que no caso de Santiago levaram milhares de famintos que vinham do interior para a capital, em busca de algo para comer, sobretudo mulheres e crianças. Estima-se que mais de três mil pessoas se reunissem diariamente ali, naquela dependência da Provedoria da Assistência, na Várzea, para receber alimento. Os relatos apontam que inúmeros mortos foram sepultados em valas comuns no Cemitério da Várzea, embrulhadas em lençóis, por falta de caixões.

Em  2006 foi inaugurado o “Monumento às Vitimas da Fome e do Desastre da Assistência de 1949” na Rotunda da Rampa de São Januário, uma obra concebida pelo arquitecto Carlos Hamelberg, em que as três barras de ferro simbolizam uma família e as argolas as vítimas. Hoje em dia, as novas gerações pouco ou nada sabem do Desastre da Assistência.

Aliás, ao fim de 70 anos, as imagens de famintos  praticamente desapareceram do imaginário cabo-verdiano.

Gisela Coelho

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