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Política

Marcelo e JCF vão escrever livro a quatro mãos

Ainda não tem título, mas os presidentes de Portugal e de Cabo Verde já combinaram toda a estrutura do livro que vão escrever a quatro mãos. Marcelo Rebelo de Sousa encontrou-se com Jorge Carlos Fonseca antes da visita a Angola.

O poeta e presidente da República de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca, lançou uma recolha comentada dos seus três livros anteriores em poesia e prosa na 20.ª edição do encontro literário da Póvoa de Varzim, o Correntes d’Escritas.

A Sedutora Tinta de Minhas Noutes é o título de uma obra em que logo na introdução Fonseca é classificado como um poeta que “extravasa o abstracionismo” e o coloca como astro-rei do surrealismo cabo-verdiano. Questionado, o poeta revê-se nestas qualificações: “Quando dizem que utilizo instrumentos e técnicas que se convenciona chamar de surrealismo, naturalmente que me revejo.”

Explica que o seu percurso enquanto jovem amante da escrita fez-se desde muito cedo e com leituras diversificadas: “Se pudesse invocar uma bandeira, diria que ao ter lido os manifestos surrealistas de Breton com 17 anos, a sua divisa acompanhou-me sempre, bem como depois Cesariny, O’Neill ou Luiz Pacheco.”

Como separa o autor do político, por exemplo, ao escrever no poema “À cidade da Praia” sobre uma” “vagina navegável”?

Quem gosta de literatura e lê poesia em Cabo Verde já me conhece, além de que eu digo sempre que um presidente da República não escreveria aqueles poemas – quem os escreveu foi o poeta. Eu vivo nos últimos sete anos com esta dupla condição, que não é de agora porque já fui ministro antes, e até disseram de mim que “é ministro e é sisudo”, a propósito de uma simulação de biografia que escrevi. Uma coisa é o presidente, outra o escritor. Um presidente nunca escreveria estes versos, mas a pessoa que os escreve é a mesma e implica uma opção.

Consegue separar os estatutos?

Neste livro estão uns textos que têm que ver com a função presidencial porque essa atividade dá-me pequenos pretextos para escrever. Pode ser a partir de gestos, olhares, troca de afetos, diálogos com políticos, porque tudo isto serve de material para a minha elaboração poética e literária. Não o faço de modo direto e cru, como num longo diário que estou a escrever – de onde retirei esses pedaços que estão no livro -, em que relato a ida à posse de Bolsonaro ou a referência a um telefonema de Marcelo Rebelo de Sousa à uma da manhã. No entanto, das mais das vezes trabalho literariamente esses momentos, portanto ser presidente dá-me muito material para a criação. Por outro lado, os discursos que faço no Dia da Independência ou mesmo no Correntes d’Escritas, em que falei da língua e da mobilidade ao mesmo tempo, não são os habituais para o cargo.

Mas são também textos políticos de chefe de Estado?

Sim, tem que ver com a ambição de Cabo Verde de chegarmos a uma livre circulação das pessoas entre Estados da CPLP por fases e de levar esses países a aderirem a esse projeto de forma gradual, mas antecedi essa parte com um discurso em que cito Sophia de Mello Breyner ou Balzac, entre outros. Ou seja, pontuo o texto político com material que pretende arejar o discurso político e abri-lo a outro tipo de referências estéticas. Pode-se ser presidente e não ter um discurso ortodoxo e fechado, diria mesmo um discurso chato.

Como é relacionar-se com chefes de Estado de Portugal, um país contra quem estava antes da independência de Cabo Verde?

Nunca tive preconceitos antiportugueses, já desde os 17 anos, e agora como presidente tenho relações muito boas com os portugueses. São os casos de Marcelo Rebelo de Sousa ou António Costa – que foi meu aluno na Faculdade de Lisboa -, mas também sou muito amigo de Passos Coelho e de Francisco Louçã. O facto de ter esta boa relação com o atual Presidente português deu-me o privilégio de ele estar presente na minha conferência e no lançamento deste meu livro na Póvoa, de ter apresentado o Albergue Espanhol no Grémio Literário em Lisboa há pouco mais de um ano. E vou até revelar uma novidade que ninguém sabe: nós vamos escrever um livro juntos.

Os dois presidentes?

Sim, Marcelo e eu vamos escrever e publicar um livro a sair provavelmente no primeiro semestre do próximo ano, que vai ser um exercício em que iremos exprimir o nosso pensamento sobre como vemos a nossa função enquanto presidentes num sistema de governo dos novos tempos. Quanto mais não seja porque temos uma visão próxima no relacionamento com os governos e os ministros.

Será um livro sobre o poder?

Iremos ter um mediador – já o escolhemos – que nos entrevistará. Isto já está assente, estamos agora a discutir aspetos de pormenor, os temas a abordar, a questão do prefácio. Haveremos de encontrar um editor que decidirá com ambos o projeto final. Não é um livro teorético ou jurídico-constitucional, é mais testemunho e sobre a vivência presidencial.

Diz o poeta João Vário que pratica um surrealismo tardio. Concorda?

Ele não o diz em sentido pejorativo, mas ao analisar o meu livro Porcos em Delírio e a minha poesia anterior, considerando-a uma escrita diferente de outros poetas cabo-verdianos. Por isso, considera que sou o fundador do surrealismo cabo-verdiano, no que concordo em sentido metafórico.

Enquanto autor é fácil ao povo do seu país conviver com as características literárias do seu trabalho?

Não sei o que os cabo-verdianos gostam nele, mas a minha poesia pouco tem que ver com a produção poética e literária do movimento Claridade. Contudo, a poesia contemporânea cabo-verdiana é de rutura ao nível estético e temático no que respeita aos claridosos, uma rutura mais clara do que acontece relativamente ao romance.

O Prémio Camões Arménio Vieira coloca-o como astro-rei do surrealismo. Isso obriga-o a perfilar-se num género?

Naturalmente, mas o Arménio disse também neste Correntes d’Escritas que o meu outro livro, o Albergue Espanhol, representa a nova Odisseia, o que é bom e uma variação muito lisonjeira para mim. Que tem que ver com a ideia, como diz João Vário, de que a minha poesia e o modo como escrevo marcam a partir de em Porcos em Delírio um momento em que passo a ter na poesia cabo-verdiana um lugar ímpar e ocupado apenas por mim. Aceito isso, mas os meus colegas poetas também pouco têm que ver com a poesia da Claridade, embora tenhamos estilos diferentes.

Opta por uns títulos estranhos. Porquê?

Gosto de títulos provocantes e sei, entre os círculos reduzidos que em Cabo Verde leem poesia e fazem crítica literária, que provocam curiosidade. É o caso de Porcos em Delírio, que criou um jogo interpretativo sobre o que eu queria dizer então com o livro. Seria um livro crítico em relação ao governo que estava no poder?, perguntavam-se, porque eu vinha de uma dissidência política. No entanto, qualquer uma dessas leituras políticas é tão abusiva como redutora. Agora, quem o voltar a ler também pode pensar que seria uma crítica a outro partido. Ou seja, dá para tudo. O primeiro livro tem um título pouco habitual também, O Silêncio Acusado de Alta Traição e de Incitamento ao Mau Hálito Geral, que é muito arbitrário. Trata-se de um género de títulos longos, provocatórios e multirreferenciais que têm muito que ver com os dos autores surrealistas. Cesariny, António Maria Lisboa e Pacheco têm coisas parecidas.

FONTE: DN (Portugal)

*Título da responsabilidade da redacção

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