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Opinião

Um olhar sobre a Nação Global

Por: Francisco Pereira*

-Nota para uma redefinição epistemológica da geometria variável da Nação Cabo-Verdiana 

Ao caminhar recentemente para o púlpito da Assembleia Nacional, para abrir a interpelação sobre a Mobilidade, Circulação e Integração, proposta pelo Grupo Parlamentar do PAICV, ouvi algumas vozes da parte do partido que sustenta o Governo, afirmando que “eu gosto de abordar a Nação Global”, sobretudo numa óptica de retrospectiva, procurando defender o Governo anterior por ter encarado a Diáspora como parte integrante da Nação. Entrementes, para consubstanciar “le droit de regard”, os deputados da situação e o governo anunciaram algumas medidas meramente administrativas e burocráticas que vêm sendo materializadas em prol da nossa comunidade emigrada. Até aqui, estamos todos de acordo. Todavia, torna-se imperioso questionar: será que a nossa Diáspora não merece mais e melhor?

Neste particular, pus-me a reflectir sobre a necessidade de um dia fazermos uma cimeira sobre a construção da Nação Global Cabo-verdiana e o papel central da Diáspora em como tornar a questão mais substantiva e, num lapso de tempo, veio à minha mente a responsabilidade política, que nós os actores políticos temos, particularmente nós os deputados eleitos pelo círculo da emigração, de não deixarmos esmorecer esta temática inscrita na genealogia de Cabo Verde, não só enquanto país, que é insular, mas enquanto nação, que se projecta para o cenário de inter-comunidades e para além do espaço no nosso arquipélago. Veio-me ao pensamento o quanto a nossa emigração articula e opera as condições macro-estruturais e globais de Cabo Verde; o quanto ela impacta, quase como vasos comunicantes, muitos dos factores micro-estruturais e locais da insularidade da Pátria Cabo-verdiana.

Por isso, defendo que a construção da Nação Global Cabo-verdiana requer uma agenda comum, um pacto social alargado e uma reflexão complexa, interagindo o trio da multidisciplinaridade económica, social cultural, demográfica e política – todas igualmente complexas e que operam cenarizações ao nível local, regional, nacional e global. E neste afã de convergência e para estas reflexões não devemos perder de vista o papel da Diáspora como um espaço de “mil possibilidades e oportunidades” para a construção nacional cabo-verdiana.

Cabo Verde, para além de ser um país arquipélago, este pequeno Estado insular, no Atlântico Médio, é uma Nação, acrescida à escala da sua Diáspora. Nação, porquanto se complementa na dinâmica do dentro-fora – dentro (na sua insularidade) e fora (na sua diasporacidade) do espaço arquipelágico – a partir da qual os cabo-verdianos criaram e consolidaram, ao longo dos tempos, convergências de factores objectivos e subjectivos, assentes no percurso histórico único, na identidade cultural irrepetível e na consciência da crioulidade como o “lastro comum” da unidade psicológica e social, tendentes à homogeneidade dos “valores cabo-verdianos”.

A conjectura da nossa Nação Global foi aferida desde há muito tempo. Mesmo no período colonial, era evidente o elemento de extraterritorialidade e de não confinar a nação ao espaço do arquipélago; mesmo depois da Independência em 1975, de não se resumir a nação à lógica operativa de estado-nação. Como afirma o historiador António Correia e Silva: “o nosso espaço nacional é maior que o nosso território de soberania”. Este espaço não só é maior, porque extravasa o Estado de Cabo Verde, como é anterior à soberania, porque a antecede largamente. Já no século XVI, era possível identificar a construção da Nação, pois os nascidos nas ilhas já era uma comunidade de pertença antropológica e cultural, portadora de uma etnicidade largamente mestiça, uma língua materna crioula, de mitos próprios, de memória colectiva engendrada, de tradição e de cultura formatadas, mau grado a lógica do sistema colonial e em clara síntese dos diversos elementos do encontro dos povos arquipélago, comunidade esta reconhecível pela forma diferenciada de ser e de estar no mundo.

Assente de que a Nação precedeu ao Estado, algumas hipóteses estão lançadas, todas válidas e complementares para uma redefinição epistemológica da problemática nacional de Cabo Verde. A grande questão permanece na fixação cronológica das várias etapas da construção da Nação Cabo-verdiana – para uns, fenómeno decorrente das acções dos escravos negros e dos camponeses na ilha de Santiago e do Fogo ou das migrações dos lançados para a Costa Africana e do contingente braçal para Portugal, ainda no século XVI e XVII; para outros, surto que advém com o surgimento do mestiço como elemento predominante na sociedade e a densificação da elite intelectual e administrativa local no século XIX, sobretudo a partir da geração dos nativistas ou mesmo do aparecimento de uma elite cultural no século XX que reclama a si a cabo-verdianidade, mais nitidamente a partir dos anos trinta com a Revista Claridade, que Aristides Pereira qualificaria de “proclamação da independência literária de Cabo Verde”, e a que reivindica a nacionalidade política, a partir dos anos cinquenta, fato que desencadeia a luta anti-colonial nos anos sessenta e setenta.

Construção que mantém pulsares de afirmação, ora de identificação europeia, de feição lusotropicalista, ora de identificação africana, de reafricanização dos espíritos, proposto por Amílcar Cabral no contexto da luta de libertação nacional, como se pode apreender mais e melhor nos escritos de Manuel Duarte, “Cabo-Verdianidade e Africanidade, e outros Textos”, de José Carlos dos Anjos, no livro “Literatura, Intelectuais e Poder” e Gabriel Fernandes, nos livros “A Diluição da África – A Saga Identitária Cabo-verdiana” e “Em Busca da Nação”, entre várias literaturas de interesse.

A identidade cabo-verdiana, em permanente construção, cedo foi transplantada pelo espaço migratório. Se Cabo Verde é um país insular, é lícito olhar para a Nação Cabo-verdiana como Diaspórica, sendo a incessante emigração e a capilaridade da comunidade cabo-verdiana no mundo a marca principal desta cultura crioula e a sua principal característica distintiva. A língua, a cultura e os modos de ser e de estar cabo-verdianos estão espalhados pelos “quatro cantos do globo”, sendo que podemos visionar a Nação hoje constituída pelo Arquipélago de Cabo Verde, território matricial e ponto nodal, e pela Comunidade Cabo-verdiana radicada nas Américas, África, Europa e resto do Mundo, com uma dinâmica relacional em rede e com um desafio das formas e conteúdos à nossa construção nacional.

Assim sendo, quando o “espaço insular” reclama reformas político-administrativas do Estado, maximé Regionalização, para o encontro de respostas mais assertivas à comunidade nas suas ilhas, como a insularidade oblige, somos levados também a repensar que reformas este mesmo Estado poderia propor ao encontro da sua comunidade “mais ao largo”, com o fito de continuar a construir a Nação à escala maior, que se extravasa para além do Arquipélago.

Decerto que a rede da geometria variável consubstanciada nos dois cenários compostos – a Insular e a Diaspórica, que decompõe a nossa Nação, translocaliza-se e desterritorializa-se, num mundo globalizado e de interdependência crescente, demanda, naturalmente, uma nova racionalidade política do Estado Cabo-verdiano. Precisamos, pois de um Estado, cujas políticas públicas, na sua fundamentação e na sua transversalidade, não percam de vista a equação da dinâmica “dentro-fora” para a construção da Nação Global Cabo-verdiana. Eis um dos grandes desideratos da Governamentalidade.

*Deputado da Nação e Investigador Universitário

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