PUB

Opinião

A peste negra e as suas consequências positivas na Europa

Por: Arsénio Fermino de Pina*

Como sabemos, a peste bubónica, também conhecida como peste negra, é provocada por um micróbio que se desenvolve na pulga do rato, transmitida ao ser humano por picada que o injecta no sangue da vítima. Ela atacou a Europa em 1346 matando metade da população, desconhecendo-se, na altura, a causa da doença, somente identificada cerca de cinco séculos mais tarde. Sabe-se que o que a desencadeou foi um preconceito religioso que levou à liquidação de gatos, suspeitados de ligação diabólica, o que levou à proliferação descontrolada de ratos. Como si vivia na Idade Média, a Era das Trevas do fundamentalismo católico, onde o Clero mandava mais do que os reis e a nobreza, ficando o povo analfabeto e ignorante na cauda da organização da sociedade, a grande maioria como agricultores como servos (escravos) da gleba, suportando, pelo seu trabalho, na total dependência dos donos da terra – o clero, a nobreza e a realeza – obrigados a pagar impostos a que estas últimas classes estavam isentas. Na Inglaterra, metade da produção dos servos da gleba pertencia aos parões donos das terras, noutros países, três quartos!

Na Inglaterra, ainda livre da epidemia, por ser uma ilha isolada, sabia-se que a peste negra se aproximava, e em meados de 1348, o rei Eduardo III pediu ao arcebispo de Cantuária que organizasse preces; o bispo Ralph escreveu aos padres da sua diocese o seguinte: “Deus todo-poderoso usa o trovão, o relâmpago e outras calamidades que são enviadas do seu trono para castigar os filhos que quer redimir”. […] “Devemos, pois, vir todos, recitando salmos, à presença do Senhor para confessarmos os nossos pecados”.

De nada serviram os salmos, porque a peste chegou e dizimou metade da população inglesa.

Paradoxalmente, a peste teve também um impacto transformador positivo na sociedade europeia medieval, tanto no plano social como económico e político. A enorme escassez de mão-de-obra causada pela peste abalou os fundamentos da ordem feudal, incentivando os camponeses a exigirem que as sujeições mudassem, que as multas e o trabalho não remunerado fossem reduzidos, o que conseguiram ao cabo de algum tempo de luta, começando os salários a subir. O Governo tentou pôr fim a isso aprovando o Estatuto dos Trabalhadores, o que não resultou, provocando a revolta dos camponeses que se recusavam a voltar à condição anterior à peste. Os rebeldes, chefiados pelo líder Wat Tyler, apoderaram-se da maior parte de Londres, vindo mais tarde a ser derrotados, mas nunca mais houve tentativa de fazer cumprir o Estatuto dos Trabalhadores. O trabalho servil em Inglaterra desapareceu, Começou a surgir um mercado de trabalho inclusivo e os salários subiram, porque a mão-de-obra era escassa e as pessoas exigiam mais liberdade e respeito pelos direitos adquiridos.

Algo semelhante se passou na Europa Ocidental; como as cidades eram menos populosas, os trabalhadores não tiveram a mesma força dos ingleses; sobretudo na Europa Oriental, os grandes proprietários conseguiram dominar a situação aumentando os salários dos trabalhadores para incrementar a exportação de centeio e trigo para a Europa Ocidental, dependência a que se chamou Segunda Servidão, tão má como a da Idade Média.

Estamos tentando explicar as razões que levaram a que a Revolução Industrial se tenha iniciado na Inglaterra e não noutros países europeus, guiando-nos pelo livro “Porque Falham as Nações – as origens do poder, da propriedade e da pobreza”, de Acemoglu e James Robinson, a que fizemos referência noutro artigo.

A Inglaterra foi um caso único entre as nações ao atingir um avanço decisivo rumo ao desenvolvimento económico sustentado e à democracia no século XVII. As mudanças económicas foram precedidas de uma revolução política que levou à criação de instituições económicas e políticas mais inclusivas (democráticas) do que as de qualquer outra sociedade anterior. Essas instituições criaram incentivos económicos e ao nível da propriedade. Foram o resultado de lutas institucionais dos séculos XVII e XVIII que levaram a dois acontecimentos muito importantes: a Guerra Civil Inglesa, ente 1642 e 1681, e, em especial, a Revolução Gloriosa de 1688. Quatro séculos antes, como veremos num próximo artigo, os barões impuseram ao rei a chamada Magna Carta.

A Revolução Gloriosa limitou os poderes do rei e do poder executivo, devolvendo ao Parlamento o poder de controlar as instituições económicas e o lançamento de impostos, abriu o sistema político a amplos sectores da sociedade que tiveram uma acção importante no modo de funcionamento do Estado. Criou o primeiro conjunto de instituições políticas inclusivas, isto é, democráticas, do mundo.

Antes o Estado lançava impostos arbitrários e manipulava o sistema jurídico. A maior parte das terras estava prisioneira de formas arcaicas de direitos de propriedade que impossibilitavam a sua venda e faziam com que fosse arriscado investir nelas. A Revolução Gloriosa mudou tudo isso, e o governo adoptou um conjunto de instituições económicas que davam incentivos para investir, desenvolver o comércio e introduzir inovações, fazendo respeitar os direitos de propriedade, nomeadamente as patentes que reconhecem os direitos de propriedade intelectual, dando assim um forte estímulo à inovação. A aplicação e o usufruto da lei estendiam-se a todos os cidadãos, o que constituiu um facto sem precedentes. A tributação arbitrária acabou e os monopólios foram quase totalmente abolidos. Em 1621, havia 700 monopólios. A capacidade da Coroa de conceder monopólios era uma fonte essencial de receitas do Estado, sendo frequentemente usado como forma de conceder direitos a apoiantes do rei. A racionalização dos direitos de propriedade facilitou a construção de infraestruturas, em especial estradas, canais, e, mais tarde, linhas de caminho-de-ferro, que viriam a revelar-se cruciais para o crescimento industrial e a chamada Revolução Industrial.

A Revolução Industrial começada na Inglaterra, uma década depois da Revolução Gloriosa, não foi uma coincidência. Os grandes inventores como James Walt (que aperfeiçoou a máquina a vapor), Richard Trevithick (construtor da primeira locomotiva), Richard Arkwright (inventor do tear mecânico) e Isambard K. Brunel (criador de vários navios a vapor revolucionários), conseguiram aproveitar as oportunidades económicas geradas pelas suas ideias, confiantes no respeito dos seus direitos de propriedade, tiveram acesso a mercados onde as suas inovações e invenções puderam ser vendidas com lucro e utilizadas.

Por que será que a Revolução Industrial se deu na Inglaterra e não em França ou Espanha? Por volta de 1588 as diferenças económicas e políticas entre a Inglaterra (com um Parlamento e uma rainha, Isabel I), a Espanha (com a Filipe II e as Cortes) e a França (com os Estados Gerais e Henrique III) era quase nula. Em 1688 as instituições políticas inglesas estavam a caminho de se tornaram mais pluralistas. A rainha Isabel I, para poder obter fundos para o Governo e as despesas da Corte necessitava de lançar impostos, poder limitado pelo Parlamento, enquanto em Espanha e França os respectivos reis, beneficiando da exploração colonial na América latina e África, sobretudo ouro, prata e açúcar da América latina e comércio de escravos de origem africana, eram ricos e tinham poder para se imporem e limitar os direitos dos seus cidadãos. A democratização foi muito posterior em Espanha e França por os seus reis e poder executivo nadarem em dinheiro, o que lhes permitia manter o absolutismo e o parasitismo, o que não acontecia em Inglaterra, cujos benefícios coloniais foram mais tardios. Em Inglaterra, os comerciantes exigiam mudanças nas instituições políticas e a redução das prerrogativas reais, o que desempenhou um papel decisivo na referida Guerra Civil e na Revolução Gloriosa. Enquanto os reis franceses puderam enfrentar com êxito as revoltas entre 1648 e 1652, em Inglaterra era muito provável que os adversários do absolutismo vencessem por serem relativamente ricos e mais numerosos do que aqueles que se opunham ao absolutismo em Espanha e França. A derrota da chamada Armada Invencível espanhola pela Inglaterra, que se acreditava capaz de derrotar os ingleses e ocupar a Inglaterra, criou a conjuntura crítica transformadora e produziu as instituições políticas claramente pluralistas da Inglaterra de pós 1688 e o domínio dos mares.

Num próximo artigo esclareceremos outros aspectos interessantes sobre o interesse das instituições económicas e políticas.

Parede, Janeiro de 2019                                                             

*Pediatra e sócio-honorário da Adeco

PUB

PUB

PUB

To Top