PUB

Opinião

De gangues a organizações de rua: políticas criminais e processos de construção da paz

Por: Redy Wilson Lima

As estatísticas criminais, não obstante, serem um importante instrumento de trabalho, não refletem a verdadeira dimensão do crime pelo fato de indiciarem apenas sobre crimes denunciados às autoridades policiais. Assim, na sua leitura é necessário ter em conta que nem todos os crimes são contabilizados, visto que nem todos os crimes são reportados ou mesmo institucionalmente apresentados publicamente por questões políticas e nem todas as ocorrências são crimes. Isto para dizer que discursos de ostentação político-partidário sobre supostas subidas ou descidas do número de ocorrências de crimes só podem ser compreendidos como performances partidárias na arena de disputa política, isto porque não implicam necessariamente subidas ou descidas da criminalidade. Igualmente, não levam em consideração certos tipos de crime, como o caso de crimes sexuais ou de colarinho branco.

Admitindo, no entanto, que o número de ocorrências tenha diminuído, a exibição desta façanha de forma unilateral é um exercício político desonesto e ignorante. Quem conhece os meandros da criminalidade na Praia, espaço sobre o qual tenho total legitimidade para falar, sabe que o processo de construção de paz passou por várias fases e ainda se encontra inacabado. As variações estatísticas ao longo dos anos indicam que ela é cíclica e tendo em conta a sua lógica evolutiva, o triênio que ora entramos poderá ser propício ao seu aumento.

As 18.162 ocorrências registadas pela PN em 2018 equivalem os níveis do ano de 2006 (18.124 – No triênio 2005-2007 foram registados uma média anual de 18.462, enquanto que no triênio 2016-2018 foram registados uma média anual de 21.807), antes da galopante subida que coincidiu com a tórrida época eleitoral que se estendeu até 2012 e os acontecimentos posteriores à operação Lancha Voadora e da droga da Calheta entre os anos de 2012 e 2015 (este último com 25.826 ocorrências – o maior dos últimos anos).

Numa sociedade extremamente institucional e fragmentada, em que o partido funciona simultaneamente como um instrumento de manutenção da dominação histórica e de ascensão económico e social de certos indivíduos e/ou grupos sociais, o trabalho de base efetuado por grupos desinstitucionalizados raramente é levado em consideração na hora de levantar a bandeira do protagonismo grupal. Na Praia, o surgimento a partir de 2013 de organizações de rua, ou seja, de grupos de jovens desafiliados ou em processo de desafiliação que se situam entre gangues de rua e movimentos sociais, indicam que estamos perante grupos que devem ser tomados como possíveis agentes de mudança. A sua emergência data do período posterior ao processo de pacificação da violência dos gangues no período pós-eleições 2011-2012 (entre os anos 2010-2012 existiam na Praia cerca de 30 confrontos armados que resultaram vários mortos e feridos, sem falar do estado de sítio implementado, embora não declarado), intensificados no pós-eleições 2016, de forma mais politizada. Falo de um tipo de organização que substituiu os gangues de rua como espaços de afirmação e protagonismo juvenil, bem como de inserção e coesão identitária.

Concordo que o aumento do financiamento de políticas sociais, políticas de resgate de adolescentes que saíram da escola (e que estão prestes a abandonar) e a implementação do Plano Nacional de Cuidados são medidas importantes. Contudo, é evidente que o seu impacto na redução da criminalidade ainda está por medir. O que importa salientar hoje é que uma suposta diminuição da criminalidade urbana, sobretudo na Praia, está relacionada, por um lado, com a mudança de atuação da criminalidade, em especial o tráfico de drogas e, por outro, com o impacto das ações comunitárias destas organizações de rua.

Entendo que a mudança de um paradigma inquisitorial (que reduz a questão criminal a uma questão policial e prisional) para um paradigma garantista (em que o Estado assume a função de buscar a maximização social, utilizando o direito repressivo apenas e exclusivamente como o último caso) é uma medida estrutural fulcral no combate às suas causas (e não apenas aos seus efeitos). Entretanto, convém realçar que as políticas de segurança interna orientadas pela teoria das janelas partidas levaram um dos seus teóricos a ressaltar que a sua implementação distorceu por completo a abordagem por eles projetada, na medida em que a participação da comunidade foi completamente ignorada.

O Conselho Local de Segurança previsto pelo PNSIC tem esse objetivo e pretende-se que funcione numa lógica tripartida (PN, entidades públicas e sociedade civil). Certo é que o programa de segurança interna anterior também previu algo do género, contudo, com sua eficácia obstruída pela reprodução da lógica de instrumentalização partidária. Isto levou à autonomização de algumas organizações de rua que por via das conexões internacionais melhoraram significativamente a eficácia do trabalho comunitário desenvolvido.

Tenho para mim que uma política pública de segurança que se quer eficaz e com capacidade de quebrar a natureza cíclica da criminalidade urbana em Cabo Verde, em especial na Praia, tendo em conta a dinâmica já instalada nos bairros, terá obrigatoriamente de adotar aquilo a que chamo de política colaborativa de segurança comunitária. Isto é, uma abordagem crítica em que a ênfase é colocada na violência estrutural (política e simbólica) historicamente reproduzida e que toma as organizações de rua como um dos principais colaboradores no processo de discussão, diagnóstico, desenho, implementação e avaliação das políticas de segurança, reconhecendo-os assim como importantes agentes de mudança.

Afinal, sem justiça nunca poderá haver paz!    

PUB

PUB

PUB

To Top