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Opinião

A importância e necessidade da Pediatria no Terceiro Mundo (1)

Por: Arsénio Fermino de Pina

Não pretendo, com as linhas que se seguem, vangloriar-me nem manifestar ter sido insubstituível no período pós-independência, mas tão-somente demonstrar o interesse e a utilidade da existência de pediatras competentes e motivados nos países do chamado Terceiro Mundo, expressar o empenho e sacrifícios dos poucos que correram riscos por opção política e patriotismo, levando ao conhecimento dos colegas mais jovens e leitores alguns fragmentos da minha vida profissional.

As razões alegadas por colegas altamente qualificados residentes nos países desenvolvidos para não participarem na arrancada da independência cabo-verdiana – não haver as mínimas condições de trabalho – eram puramente egoísticas, ou políticas, dado que as condições exigidas nunca existiram e só poderiam ser criadas por nós próprios, os nacionais qualificados, que conheciam bem o país e dominavam a língua, não por cooperantes, como veio a acontecer com o concurso meu – o primeiro pediatra nacional a pisar terra cabo-verdiana -, o Dr. Ireneu Gomes – psiquiatra – a Dra Joana – obstetra, Dr. Fragoso – cirurgião, Dr. Medina – cirurgião, e, mais tarde, o Dr. Dario Dantas dos Reis – também o primeiro cardiologista nacional a chegar a Cabo Verde, que o fizeram por opção política e profissional, sacrificando-se devido à avalanche de trabalhos a que tiveram de enfrentar por sermos poucos, a que sujeitámos também as famílias, sem nenhumas regalias nem garantias particulares e com vencimentos em dose homeopática.

Quatro colegas nacionais abandonaram o país, no período de transição, e mais dois, pouco após a minha chegada ao país. Nessa altura, não pensávamos em dinheiro, mas em fazer o melhor em benefício das populações, demonstrar sermos capazes de fazer mais e melhor do que no tempo colonial por comungarmos dos mesmos ideais nobres dos governantes. Diria, como o rei Eduardo III de Inglaterra, ao apanhar do chão a liga da dama com quem dançava, face a olhares comprometedores, Honni soit qui mal y pense, isto é, maldito seja quem pensar mal disso, no meu caso, das minhas intenções nestas linhas.

Cheguei a S. Vicente, em Fevereiro de 1976, com mulher e dois filhos menores, já com as especialidades de Pediatria e Saúde Publica (já tinha Medicina Tropical) feitas durante o período de licença especial em comissão eventual de serviço, em Lisboa, com exame de especialidade pela Ordem dos Médicos de Lisboa, depois de ter trabalhado cerca de cinco anos em várias ilhas como generalista, sem nunca ter podido gozar licença disciplinar a que tinha direito por, como constava no Boletim Oficial, fazer falta ao serviço.

Aproveitei o tempo da especialidade para frequentar outros serviços – Centros de sangue, Ortopedia, Cirurgia, Neonatologia e Urgências Pediátricas – por saber que, em Cabo Verde, teria de ser eu a resolver alguns casos que, em Portugal, são encaminhados para os especialistas dessas valências, o que realmente veio a acontecer, como descreverei mais adiante.

Fui o primeiro pediatra nacional a pisar solo cabo-verdiano, com um cubano na Praia. Tinha havido uma na Praia, no tempo colonial, esposa de um estomatologista português, que aí trabalhou poucos meses e nada deixou que me pudesse ter sido útil quando, como generalista, em 1967 e 1970, fui nomeado director da enfermaria de Pediatria do Hospital Central da Praia.

De regresso a S. Vicente, em 1976, pouco tempo depois, fui solicitado a resolver uma situação crítica de icterícia intensa numa recém-nascida filha do ministro da defesa, nascida na Praia e que viera com a mãe a S. Vicente, uma semana após o parto. O grupo sanguíneo da mãe era Rh positivo, bem como o da criança, segunda filha, tendo a primeira nascido, se não me engano, em Lisboa. Duvidando do grupo sanguíneo, mandei repeti-lo com urgência. Afinal, era negativo, e da recém-nascida, positivo. A mãe tinha sido sensibilizada aquando do primeiro parto, criando anticorpos contra fetos Rh positivos. Havia que solucionar isso com exsanguíno-transfusão (substituição do sangue) e não tínhamos nenhuns instrumentos para isso.

Como na Praia o colega cubano tinha feito uma, também sem condições, e o tempo urgia, não podendo enviar a criança a Praia ou Lisboa, encomendei sangue, reuni seringas, agulhas, ampolas de cálcio e iniciei a substituição do sangue através da veia jugular, à seringa, o que durou cerca de quatro horas. Salvou-se a criança! Posteriormente foi revista nos EUA e em Portugal onde confirmaram o sucesso da intervenção.

Quando passei a dispor do material essencial para as exsanguino-transfusões, estas demoravam meia hora a 45 minutos, pela veia umbilical, com cateter, e o pessoal médico que trabalhou comigo aprendeu a fazê-las.

Sendo a primeira exsanguíno realizada em S. Vicente, nada constou do facto, não obstante a realizada pelo cubano na Praia ter sido badalada nos jornais e rádio.

Recebi um elogio do exterior, do Prof. de Pediatria Nuno Cordeiro Ferreira, quem observou a criança em Lisboa, não acreditando que se pudesse fazer exsanguino-transfusões em Cabo Verde. Quando o pai da criança citou o meu nome, ficou radiante e mandou felicitar-me, visto ter feito a especialização nos seus serviços, no Hospital de D. Estefânia. Actualmente, a criança é adulta licenciada em Direito, funcionária bancária.   Em S. Vicente fui trabalhar numa “Enfermaria de Pediatria” no Hospital Velho sem as mínimas condições de higiene e funcionalidade; berços desconjuntados sem colchões, uma única retrete no fundo da sala com sanita entupida, uma saleta onde preparávamos a medicação, os leites e guardávamos os processos clínicos, uma única entrada e duas janelas, uma em cada extremo da sala.

Dispunha de uma enfermeira e duas serventes para vinte camas; dois colegas recém-formados (um casal) vindos de Portugal trabalhavam na enfermaria. Medicamentos e instrumentos não adaptados à Pediatria, ausência de soros apropriados, de oxigénio, aspiradores e Ambu. As mães e acompanhantes permaneciam na enfermaria de dia e noite e cozinhavam na enfermaria. Enfim, a “enfermaria” mais parecia um mercado de bairro. Dava para desanimar, mormente por ter estado habituado a trabalhar nas melhores condições em Portugal.

Felizmente, sou teimoso e não é qualquer contrariedade que me desmobiliza. Teria luta dura a desenvolver e havia que inventar a estratégia, que não podia ser de guerra aberta, mas de guerrilha. Contaram-me que havia pessoas do povo que falavam, referindo-se a mim, de um iatra branco, desconhecendo o termo pediatra.

Quando me preparava, pela primeira vez, na velha enfermaria, para fazer uma punção lombar (PL), informou-me a enfermeira-chefe de que isso era sempre feita pelo médico-cirurgião, o mesmo tendo acontecido aquando de um desbridamento para administração de soro. Com o tempo, todos os colegas que trabalharam comigo passaram a fazer PL com boa eficácia.                                                                               [continua]

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