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Opinião

Carros que falam

Por: Carlos Sousa Monteiro

Num espaço acolhedor de um café próximo do Sucupira (na Cidade da Praia, Ilha de Santiago), em uma animada cavaqueira com a minha amiga sobre as frases e nomes que tinha recolhido nesse dia, inscritos nos vidros do hiace, ela atira para o ar esta frase sintética: “Carros que falam “.

Estávamos em junho de 2002, quando escrevi e publiquei num dos jornais desta praça, um pequeno texto denominado: “Mensagens nas Viaturas HIACES em Santiago”.

Nessa altura eu descrevi uma viagem da Praia até ao Tarrafal, em um mini-bus, de modelo hiace, e nele debrucei-me sobre as mensagens inscritas nos vidros desses veículos. Passados esses anos após esse pequeno texto, volto de novo a escrever sobre o mesmo assunto, mas agora com um outro título : “Carros que falam”, por sugestão de uma amiga.

Em uma das idas e vinda do meu bairro até ao serviço e vice-versa, como que por acaso chamou-me a atenção alguns nomes inscritos nos Hiaces e lembrei-me, então, do meu texto de 2002 e das mensagens, tendo questionado se as mesmas mudaram de conteúdo ou se se mantiveram.

Comecei a registar as mensagens durante o trajeto, e decidi que devia ter alguma paciência para ir até à paragem de Hiace, no Sucupira, e registar os nomes e ter alguma conversa com os condutores e/ou proprietários sobre o que os motivaram a mandar escrever e o conteúdo dos mesmos. Agora, com a paragem obrigatória no Sucupira dos hiaces, a missão a que me propus ficou mais fácil, pois que, rapidamente, percorri o estacionamento e registei os nomes inscritos nas viaturas que estavam aguardando os passageiros para as diversas localidades da Ilha de Santiago. Consegui, também, falar com alguns condutores e também com o artífice que escreve e cola as mensagens nos vidros dos veículos.

Durante o trajeto que faço todos os dias, e a recolha no Sucupira, registei 95 nomes, classifiquei-os em dez sub-grupos e quatro grupos: Recomendação de prudência (fé, religiosidade, confiança em Deus, proteção contra mau olhado); Força (heroísmo, desafio, irreverência, arrogância); Amizade (amor, sensualidade); Lembrança, Recordação (clube, nome de pessoa e lugar, palavra em voga), e procurei ver se havia alguns hiaces que cujos escritos tinham ainda mantido após esses anos.

Interessante verificar que só dois nomes se mantêm: “Tarrafal” e “Ka bu stranha”. Os demais nomes, são novos, mas com as mesmas mensagens.

Os valores relativos à frequência de cada um dos nomes por grupo tiveram aumento para as mensagens relativas aos nomes das pessoas e lugares, e a redução dos nomes sobre a religiosidade, amor e amizade.

Alguns exemplos de textos

De religiosidade: “Jesus tem plano pa nos”, “Deus é fiel”, “Nha pai ta protegem”, “Obrigado pa nhos tudo mas um bés” e “Cabeça Frio”; Amizade e amor: “Sempre bô”, “Irmãos Unidos Felicidade”; Força e irreverência: “Só sesboka”, “Inveja pa ké”, “Ka bu stranha”,  “Tudo Pago”, “Dragão”, “Cangurú”, “7 Pó” e  “Nhos Ruspeta Sorry”; Nome de lugar e pessoas: “Tarrafal”, “La Ruberon Chiquero”, “D’Pico”, “Mulatinho”, “Ta d’Tutu” e “D’Miranda”).

As mensagens, muitas vezes, têm um conteúdo direto, mas outras indiretas, e estas resultam de uma vivência com episódios de falta de respeito, de desonestidade para com o condutor ou família do proprietário. Por vezes elas também são dirigidas a um amor não correspondido, a uma comunidade, à família e amigos como forma de demonstração de sucesso na emigração, e de luta pela superação económica e dificuldades na vida.

Esses veículos passam na estrada, param, estacionam, fazem curvas, correm, e lançam para o vento, para quem quiser ler as frases que falam sobre alegrias, sucessos e insucessos da imigração e negócios, da última moda, nomes dos proprietários, amor, amizade, traição, crenças e religiosidade, localidades, tristezas. Elas traduzem em parte, cultura cabo-verdiana de uma franja da população da ilha de Santiago que exerce a atividade económica no sector dos transportes terrestres. Os carros hiace com as inscrições nos vidros falam de facto!

Um outro elemento, interessante é a grafia que é usada para escrever as mensagens. A maior parte das vezes utiliza-se a grafia proposta pelo ALUPEC, misturadas com a portuguesa.

A influência do país de emigração também aparece com o uso da língua portuguesa, inglesa e francesa e por vezes uma tradução literal dessas línguas para a língua portuguesa ou caboverdeana.

Cidade da Praia, 27 de maio de 2019

 

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