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Opinião

Praça do Palmarejo: O poder judicial na corda bamba e o país à beira do precipício

 

Por: Cipriano Fernandes

“Não procures tornar-te juiz, se não tens força bastante para extirpar a injustiça, para que não aconteça que te intimides perante um homem poderoso, e te exponhas a pecar contra a eqüidade.” (Eclesiástico 7: 5-6)

O assento do Tribunal da Relação de Sotavento (TRS) concernente ao embargo do assalto à Praça do Palmarejo, anteriormente decretado pelo Tribunal da Comarca da Praia, essencialmente disse que este não tem competência para julgar a demanda que fora feita pelos cidadãos moradores no Palmarejo e,  com esse argumento, sumariamente recusou apreciar a substância da matéria em pauta, pelo que deu razão à Câmara Municipal da Praia, anulando o embargo.

Todos os cidadãos atentos deste país sabem que eu, Cipriano Fernandes, ao lado de um punhado valente de colegas arquitectos honestos e patriotas, estou, já há 21 anos, a pugnar pela gestão transparente e responsável do território nacional, caracterizada pelo primado da lei, mediante a elaboração e implementação de uma rigorosa e transparente política de ordenamento do território (OT). E tenho lutado com muita persistência, nunca desanimando, seja porque o OT é essencial para a única gestão que interessa à promoção e defesa dos supremos interesses da Nação, seja porque qualquer geração tem o dever de cuidar do território tendo sempre em atenção os melhores interesses e uma maior qualidade de vida das gerações subsequentes.

Ora, sem OT isso é impossível. Aliás, sem ele o desenvolvimento sustentado é uma quimera.

Infelizmente, a gestão do território tal como descrita acima nunca constou do rol das prioridades da classe política deste país depois da instauração do Estado de Direito em 1991. Além de nunca se ter preocupado em instalar e desenvolver uma cultura de planeamento, ela tomou, ao longo destes quase 30 anos, tantas decisões danosas na gestão do exíguo território nacional que hoje muito do potencial de desenvolvimento socioeconómico real e inclusivo da nossa terra está irremediavelmente perdido.

Em 2006 percebi que a minha luta em prol da transparência na gestão do território inevitavelmente devia incluir a vertente da responsabilização dos responsáveis políticos (eleitos e/ou nomeados) encarregues dessa gestão.

Nessa altura, já a responder pela Ordem dos Arquitectos Cabo-verdianos (OAC), fui obrigado a levar ao Ministério Público (MP) um conjunto de actos muito danosos do interesse público que demandavam imediata e cabal acção por parte dessa instituição.

Qual foi o meu espanto quando o Procurador-geral da República de então me disse que apreciava a iniciativa da OAC mas que infelizmente não podia fazer nada, dado que nessa altura ainda não existia, definida na lei (Código do Processo Administrativo – CPA), a moldura penal em que um responsável político poderia incorrer caso prevaricasse na gestão do território colocado sob sua responsabilidade.

Por outras palavras, devido à inexistência de um CPA, qualquer indivíduo que cometesse um crime na gestão do território era, em 2006, INIMPUTÁVEL!

Bastante indignado, perguntei-lhe se pelo menos havia a preocupação em elaborar tal lei. Ele disse que sim e que o Advogado Carlos Veiga (antigo Primeiro-Ministro) era o consultor que havia sido contratado para tal tarefa e que estava a trabalhar nisso.

Resignado, tive porém o cuidado de deixar claro que a postura dos nossos magistrados, de passividade perante a falta de uma ferramenta de trabalho tão básica era inadmissível. Ele me respondeu que se havia coisa que tinha aprendido naquela função era ter paciência!…

Incorrigível, em 2009 voltei ao MP, com outro dossier semelhante ao de 3 anos antes. Encontrei outro Procurador-geral (por sinal o que era Procurador-geral Adjunto em 2006). E não é que acabei por receber a mesma desculpa de não ser possível fazer nada devido à inexistência de um CPA?

No comment!…

Em Janeiro de 2010, poucos meses antes de deixar de responder pela OAC, enviei um requerimento ao então Primeiro-ministro no qual a Ordem dos Arquitectos formalmente lhe demandava não somente um CPA mas também a instalação urgente dos Tribunais Administrativos, pois era inadmissível que a Administração continuasse inimputável.

Tal requerimento só não foi uma carta-aberta por não ter sido publicado nos jornais da praça. Não somente seguiu com o conhecimento de todos os membros da OAC, como também do Sr. Presidente da República, do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, do Procurador-geral da República e do Presidente da Associação Nacional do Municípios. Foi indeferido, como hoje se vê.

Entretanto, julgo saber que a proposta do CPA terá sido concluída, tendo inclusivamente sido alvo de elogios por parte do Prof. Diogo Freitas do Amaral em 2012, salvo erro, quando foi convidado para vir cá dar a sua opinião. Tal proposta foi simplesmente engavetada até hoje.

Ao obrigar que as demandas de foro administrativo passassem pelos Tribunais Cíveis, atravancando-os ainda mais, era óbvio que o que a classe política pretendia era capitalizar na consequente morosidade judicial para poder permanecer inimputável o mais possível.

Fast forward para 2019.

Esta decisão do TRS é uma das mais infelizes jamais tomadas pelo nosso poder judicial desde a independência e constitui, caso transite em julgado, um dos maiores atentados feitos contra o Estado de Direito e contra a construção de uma sociedade democrática que, suponho eu, ainda é o desiderato da maioria dos cabo-verdianos. Por duas razões fundamentais:

Quando um Tribunal de Primeira Instância assume corajosamente as competências de Tribunal Administrativo para julgar um acto de gestão da coisa pública acontecido na Comarca de sua jurisdição, acto esse extremamente danoso dos interesses do povo cabo-verdiano como é o assalto à Praça do Palmarejo, a última coisa que o TRS podia fazer é contradizê-lo e anular o seu acto de extirpar a injustiça, ainda por cima recusando apreciar os actos graves aí descritos, julgados e fundamentadamente condenados. Não existindo os Tribunais Administrativos, seria sempre do interesse nacional que os actos da Administração passassem pelas mãos do maior número possível de tribunais e de magistrados até transitar em julgado, exactamente como acontece com o cidadão comum. Porém, o Estado não somente se recusa a aprovar a ferramenta-magna de responsabilização dos seus dirigentes e a instalar os respectivos tribunais, como ainda tem direito ao tratamento especial de apenas uma instância julgar os seus actos, com todos os óbvios riscos que isso acarreta. Não faz sentido defender que um Tribunal de Comarca seja incompetente para julgar actos da Administração cometidos nessa Comarca, sobretudo com o pano de fundo de muito dúbias manobras por parte dessa mesma Administração, durante quase 30 anos, para o país não ter um competente CPA e os respectivos tribunais.

Sendo esta uma litigação muito desigual, uma vez que a CMP está a usar dinheiro público para pagar os seus advogados, enquanto que os cidadãos que se opõem ao assalto à Praça têm que tirar dinheiro do seu bolso, e tratando-se de um assunto de foro constitucional (saber se Cabo Verde, como Estado de Direito democrático, pode se dar ao luxo de não ter um Código do Processo Administrativo e de ter uma Administração inimputável), logo, um assunto de importância capital para a sobrevivência do país, o mínimo que o TRS devia fazer era deixar à CMP o ónus dos recursos sucessivos às instâncias superiores até que o Tribunal Constitucional (TC) se pronunciasse.  Este, repito, é um assunto de foro constitucional e é mister que a última palavra seja do TC.

De todo o modo, importa que os cidadãos que governaram o país nestes 28 anos venham explicar ao povo cabo-verdiano por que razão a Administração ainda é inimputável. O Dr. Carlos Veiga comandou duas maiorias qualificadas consecutivas, tendo tido, por isso, as melhores condições políticas para fazer tal lei. Não o fez. No entanto, mais tarde aceitou aparecer como consultor pago para a elaborar. Hoje é o principal mentor do Governo e tem pelo menos a obrigação moral de trabalhar para que a proposta do CPA, da sua autoria, saia da gaveta.

O Dr. José Maria Neves, muito embora se lhe reconheça o mérito de pelo menos ter tido a sensibilidade para colmatar essa brecha grave ao mandar elaborar a proposta, igualmente falhou, pois não se pode aceitar que logo após o elogio público do Dr. Freitas do Amaral, a proposta tenha sido engavetada.

Presumivelmente ambos podem, num futuro próximo, ser candidatos a Presidente da República e tais aspirações são, obviamente, legítimas. Mas importa que se expliquem cabalmente, até porque a continuar este estado de coisas, ainda por cima confirmado por uma eventual decisão do TC dando razão ao TRS, quando eventualmente qualquer deles assumir a Presidência em 2021, o país poderá estar num estado calamitoso. Todos sabemos que a corrupção já tomou conta da sociedade cabo-verdiana.

Está claro que com esta decisão muito infeliz do TRS, o Poder Judicial cabo-verdiano desperdiçou uma ocasião ímpar para se firmar perante o Poder Político, correndo agora o risco de consumar uma jurisprudência fatal para o país. Por isso é que está na corda bamba.

O país está à beira do precipício porque claramente não poderá se aguentar muito mais tempo com dirigentes inimputáveis e cada vez mais impunes.

O maior problema de Cabo Verde é a sua classe política. Mas o facto é que muitos magistrados também não estão a ajudar…

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