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Cultura

Documentário "Tarturismo" revela o outro lado da protecção das tartarugas na Boa Vista

Já está finalizado e em processo de tradução para candidatura a festivais internacionais, o documentário Tarturismo, assinado por Mário Cabral. A película, de 52 minutos, revela o outro lado da protecção das tartarugas na Boa Vista. Um lado que dá a conhecer a relação entre as ONG’s locais e a população da ilha, e que fez Mário Cabral constatar que entre alguns reina o sentimento de que as tartarugas são “mais importantes” que as gentes da Boa Vista.
Boa Vista é, depois das ilhas Masirah, em Oman, e Flórida, nos Estados Unidos da América, a terceira maior reserva do mundo de nidificação de tartarugas. Anualmente, estima-se que mais de três mil desses reptéis procurem as praias da ilha das dunas para a desova, assegurando a continuidade da espécie Caretta-Caretta. Contudo, apesar das campanhas de protecção e, de mais recentemente, se ter instituído uma nova Lei de protecção das tartarugas, a verdade é que ainda há um número considerável de animais que não regressam ao mar após a desova. Fora isso, hoje em dia a desova é também um negócio turístico, sobretudo nas ilhas da Boa Vista e do Sal, onde cada turista paga em média 50 euros para ir assistir a este fenómeno da natureza marinha.
Estas e outras constatações estiveram na origem do documentário Tarturismo, do realizador Mário Cabral.
O documentário, de 52 minutos, já está pronto e está a ser traduzido para inglês, para que possa encabeçar candidaturas a festivais internacionais de cinema.
 

Como tudo começou…
As filmagens remontam ao início de 2016, mas a ideia, como explicou ao A NAÇÃO Mário Cabral, vem de trás.
“É um projecto que desenvolvi em 2010 no âmbito do programa Africadoc., no Senegal. Nesta ocasião pude apresentar o mesmo a vário produtores internacionais presentes no pinche que manifestaram interesse em apoiar, mas só depois das filmagens. Depois fui convidado por um dos tutores do programa Africadoc para integrar o programa de desenvolvimento intensivo de projectos de interesse dos produtores presentes, em St.Louis, no Senegal. Infelizmente por motivos laborais não consegui participar. Depois disso assumi fazer este projecto que estava orçado em cerca de 2500 contos no total”.
Na altura, o filme era “relativamente caro” face às capacidades financeiras do realizador e, também, porque no início Mário Cabral previa fazer imagens subaquáticas e aéreas da ilha da Boavista, numa altura que não haviam drones. “As filmagens só começaram em 2016, pois, para filmar na Boa Vista precisava de alguns apoios essenciais, nomeadamente alojamento e transporte para equipa. Adquiri uma câmara especial com visão nocturna para poder filmar a desova e todo o trabalho nocturno nas praias da Boavista”, recorda.
A recolha de imagens aconteceu durante dois períodos da época da campanha de protecção das tartarugas. Na época da preparação dos acampamentos e no período das desovas.
“Durante a noite, além da equipa de protecção, acompanhei grupos de turistas que se deslocavam as praias para observar as tartarugas”, lembra. Questionado sobre se durante a rodagem do documentário pode perceber até que ponto as visitas nocturnas às tartarugas podem ou não constituir um risco para a desova, Mário Cabral, deixa transparecer que depende das circunstâncias.
“As visitas dos turistas que acompanhei pareceram-me organizadas. Não creio que terão algum impacto negativo. No entanto, já as visitas feitas avulsas com acompanhantes que não fazem parte do pessoal da preservação, que não conhecem o ambiente, penso que aí, sim, terá um impacto tanto para os ninhos como para as tartarugas que regressam para desova”. É que, como explica, há a questão do uso de luz especial e os cuidados necessários a se ter em conta para se andar numa praia de desova.

Tartarugas “mais importantes” que as pessoas
Quando pensou no projecto Boa Vista tinha muito menos habitantes que tem hoje (cerca de 17 mil), sem contar com o fluxo turístico nesta que é a segunda maior porta de entrada de turistas no país, com 26,9% de acolhimento, em 2018.
“Queria mostrar ou perceber como seria possível uma preservação numa ilha que se falava na altura que iria ter uma chegada missiva de turistas. Algumas questões importantes do filme só percebi no terreno, nomeadamente o não engajamento das comunidades locais nas ONG’s de preservação… a revolta dos jovens desempregados da Zona Norte que acham que deviam ganhar mais, etc.”
Segundo explica, precisamente no Norte, há alguma insatisfação em relação à questão da protecção das tartarugas.
“Estive na zona Norte onde percebi alguma revolta da população dessa zona face ao preço dos salários pagos aos locais para trabalharem nos acampamentos de tartarugas.”
O documentário, conta Mário Cabral, pretende contribuir para ajudar de alguma forma na sensibilização e na necessidade de preservação desta espécie em extinção, mostrando também aquilo que o realizador chama ser “o outro lado” que precisa ser trabalhado. Ou seja, a integração da comunidade local nos trabalhos de preservação de uma formada efectiva.
“Creio que seria uma boa forma de dar emprego aos jovens nativos da ilha que conhecem melhor que ninguém a sua ilha.”
Tarturismo mostra assim a Boa Vista ao mundo, acompanhando o dia a dia dos acampamentos de desova de tartarugas, revelando o sentimento da população em relação ao trabalho das várias ONG’s na ilha, incluindo a própria questão da preservação das tartarugas junto dos pescadores locais, tidos muitas vezes como os predadores dessa espécie.
O documentário acaba por demonstrar, segundo Cabral, que acaba por existir até um conflito de interesses entre as ONGs de protecção das tartarugas e os habitantes locais.
“Estes não estão engajados nesta preservação, pois entendem que deviam ser melhor remunerados face aos apoios que as ONG´s recebem de organismos internacionais”.
É que, apesar de as ONGs, reconhecerem o papel fulcral da população local na luta em prol das tartarugas, ainda não conseguiram convencer grande parte dessa população local a se engajarem nas campanhas de sensibilização. Se, por um lado, a população local pretende receber mais para aderir às campanhas de protecção, as ONG´s dizem que não podem oferecer mais.
De salientar que ano passado, Cabo Verde registou cerca de 124 mil ninhos de tartaruga, um número recorde e três vezes maior do que o do ano anterior. Este ano, várias ONG´s ouvidas pelo A NAÇÃO no início da época estimam que os números da desova sejam inferiores. Actualmente, agências e particulares fazem turtle watch, sobretudo no Sal e Boa Vista, gerando um negócio de milhões, enquanto a população local “assiste no desemprego”.
Gisela Coelho
*Reportagem publicada na edição impressa nº628 do Jornal A NAÇÃO

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