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Opinião

Ser é somente naufragar

Por: António de Castro Caeiro (Lisboa, 1966)*

[Sobre Instruções Para Uso Posterior ao Naufrágio]

Um livro de poesia que se chama Instruções para Uso Posterior ao Naufrágio encerra em si uma relação impossível com a viagem, como o título expressa. Não sem ironia o título dos 33 primeiros poemas diz em latim: “começa”. Mas o que começa é o princípio do fim. Conseguimos escutar a frase de Nietzsche: Incipit tragoedia, começa a tragédia. Afinal de que viagem se trata, quando, mesmo que não aborte, a sua cadência é a da tragédia. Comecemos por dar a palavra a José Luiz Tavares enquanto o “eu” poético do livro que aqui nos convida à reflexão.

 

 

INCIPIT

Perdoa, musa, esta disposição

de não pingar a plenos pulmões

o que se ganhou à enxurrada

recrudescida, ao aluvião de tantos dias.

 

Por mim, digo-te, musa: perdi a conta

aos descalabros, erodida a estação

donde a promessa desembestava,

inominada, a porfiar entre a franca

 

cegueira e a galhofa dos deuses

de partida. Apraz-me agora esse

rio preto, o tombo sem cerimónia,

que é o voo que calhou ao homem

 

depois do extravio caminho da eternidade.

Tudo somado — um legado de poeiras,

que se surpreende a inflar-se de gorjeios,

desbordando pelas ranhuras por onde

 

se engasga o dom — a indevida enxertia

cedo quebra em ramos amarelecidos,

mas não sei, musa, se abraço o cadáver

trânsfuga ou adiro à livre circulação do susto.

 

 

“O aluvião de todos os dias” está sob o olhar da “franca cegueira”, porque na verdade se encontra desde sempre já a ser “tombo sem cerimónia”, “o voo que calhou ao homem”, “extravio caminho da eternidade”, somos “o cadáver trânsfuga” que podemos abraçar que é sem alternativa a adesão “à livre circulação do susto”.

 

O INCIPIT revela a situação da facticidade humana e o que se segue nos próximos 33 versos são ensaios que resultam do ensanduichamento entre o grande dia da vida e a eternidade, relativamente à qual o grande dia da vida nada é.

 

Rejeita-se a mais grande viagem: “Buscas nos versos a antiga morada?/ Recorda-te que a vida é só pancadas/… recolhe as velas já enfunadas.”, quando o modo de habitar a antiga morada já inabitável é “sentir o fracasso já na antessala”. Quem se encontra na velha morada de onde se partiu não é já o próprio que se foi mas o próprio é o “Vulto sonâmbulo” que “dorme escutando da eternidade o refrão”. Nos versos, como no refrão da eternidade, “procura-se um país”, onde “só realidade é o nada que se sente”, “As mais belas soberbas construções, … desvanecem-se sobre esta mesa/ pobre; e por só imaginados os terrores assíduos, quem sumido na treva, sua sina ali ainda reza” (2. p. 13).

 

A viagem é um dos laboratórios existenciais privilegiados para se pensar a vida. A contemporaneidade já só se desloca no espaço formal das coordenadas do GPS, nem sequer o faz geograficamente. Mas uma vida reduzida a deslocações não fica incólume. Ninguém fica imune à impossibilidade de viajar, porque o tempo é o horizonte mais próprio em que o podemos fazer. Para nos deslocarmos no espaço e geograficamente precisamos de tempo, mas a sua duração tem a qualidade da quantidade do tempo. Os atrasos e as chegadas cedo, o muito tempo que dura as mais diversas deslocações quotidianas de casa para onde temos de ir para tratar de assuntos, desempenhar funções, exercer cargos, ir às compras, praticar desporto, visitar pessoas, quando estamos ocupados e com tempo livre, todos os tempos de que precisamos para cumprir a nossa agenda têm uma duração maior ou menor, prazos: curtos, médios e longos. Domesticamos a qualidade do tempo na quantidade da duração. A partir daqui, tempo pode ser dinheiro e nós temos de estar ou de nos sentirmos ocupados. As viagens que fazemos ou pelo menos assim lhes chamamos são viagens de trabalho e quando são de lazer são para objetivos específicos, fazer férias. Não precisamos de guias de viagens físicos, mas levamos alguém que conhece o país, a cidade ou a região para onde vamos ou somos nós esses agentes que permitem outros serem turistas connosco. Para nos deslocarmos no espaço formal da astronomia ou atravessarmos as geografias sem fronteiras das coordenadas do GPS, latitudes e longitudes precisamos também de tempo, mesmo que se trate de um tempo reduzido formalmente à sua quantidade e não especialmente qualificado no modo da sua duração. O modo da duração do tempo que nos permite ter a compreensão de que perdemos ou ganhamos tempo, chegamos depressa ou tarde demais, somos precoces ou serôdios está enraizado numa compreensão do tempo da existência humana cronicamente finito. Não que não possamos imaginar que vivemos para sempre, mas o para sempre humanamente considerado é sempre a acabar. Ainda que haja um afastamento da última fronteira, do derradeiro dia, do tempo que temos para viver, para lá do qual não se sabe bem como será, tudo se passa como na relação espacial que temos com a linha do horizonte. Ela está lá ao fundo a demarcar o oceano do céu, o céu parece que é o plano de fundo de tudo, mas por mais que avancemos em caminhos marítimos na sua direção, parece que se afasta continuamente de nós. Por outro lado, sabemos que temos os dias contados, que quando aparentemente temos muito tempo, o muito transforma-se em menos tempo e depois em pouco tempo, e depois em já tempo nenhum. Os prazos vencem. A deslocação parece dessensibilizar-nos do carácter crónico da vida humana, mas tem consequências, sobretudo quando não fizemos outra coisa senão deslocar-nos, galgar distâncias absurdas entre pontos longinquamente afastados, ao aproximarmos fronteiras absurdamente afastadas. Na deslocação parece não haver tempo, mas é porque a tendência humana é sempre a de anular o tempo que é preciso para chegarmos e parece que apenas chegamos no espaço, quando na verdade é no tempo que chegamos. Se o tempo da deslocação parece subtrair-se a qualquer qualidade de duração finita, também há uma nivelação do tempo ao futuro. Estamos sempre em trânsito, a deslocar-nos no espaço em direção a um qualquer futuro, ao acordarmos para começar o dia, tomar duche, o pequeno almoço, vestir-nos, sair de casa para trabalhar, depois à tarde para fazer o que há para fazer à tarde, haverá ainda o serão, o fim de semana, as próximas semanas, o Natal que se aproxima, as férias, tudo o que há na agenda, com se a aproximação estivesse já esboçada num projeto que vai por aí além e se encontra assinalada hora a hora, nos dias espalhados pelos próximos meses nos nossos calendários e agendas, com manchas das marcações mais preenchidas nos próximos meses e marcações mais escassas para os próximos meses. Mas não será assim também que viajamos? Não viajamos em direção do futuro, quando chegarmos onde queremos chegar? Podemos viajar para partir de onde estamos, para ficar para onde vamos, podemos também partir para partir, porque sem partirmos ficamos sempre mais na mesma e somos criados para partir. Podemos viajar para partir, viver aventuras e regressar. Nunca se regressa o mesmo, não quer dizer que se regresse melhor nem pior, somos sempre outros quem parte e regressa são as mesmas pessoas só no papel. Somos diferentes. Há tantos eus quantos somos sem partir, à partida, à chegada, se fomos ou não felizes, se regressamos como emigrantes de sucesso ou viemos como baleias para morrer, quando é pouco já o tempo com capital de esperança ou de possibilidade. A viagem não deixa de ser pensada, à partida, numa das suas possibilidades referenciais. O seu referente é a deslocação. Mas é de tempo que se precisa para nos deslocarmos e é tempo também que requeremos para viajarmos. Mas rotas marítimas ou aéreas ou caminhos tomados não dependem da existência de rotas internacionais já traçadas nem rodovias ou ferrovias ou caminhos de peregrinos. O caminho faz-se caminhando. Outras viagens há, contudo, que se dão quando não saímos do mesmo sítio. Podemos pensar que nos pulverizamos por uma multiplicidade de sítios, a China do nosso imaginário não menos imaginada do que a Lua, o fundo do mar, todos os sítios onde gostaríamos de ir e fomos. Mas sabemos bem que quando sentimos saudades de um sítio é porque temos saudades de um tempo. Quando temos saudades de um tempo não podemos viajar até ele. Podemos ir ao sítio onde fomos felizes, mas o sítio não é o tempo, o onde não é o quando, o tempo passa inexoravelmente de facto. E, contudo, podemos matar saudades não se sabe bem como mas sabe-se que assim é de quando em vez. Por outro lado, há viagens que dependem de outras dimensões que se abrem para nós, vêm sob condição nas nossas existências. A viagem que faz o artista qualquer que seja o seu ofício implica a abertura de uma dimensão que se encontra fechada não só para os outros mas para ele até dada altura. O que podemos chamar momento de inspiração é um clima que paira e depois se converte na atmosfera complexa não geográfica da disposição que vibra e dá a entender o que não entendemos com nenhuma linguagem disponível até então. Os climas e as atmosferas, os ambientes disposicionais fazem vibrar horizontes de sentido até então mudos e calados, mas que requerem linguagens muitas vezes inventadas para existirem, serem ditos, ressuscitados, inscritos como novidade na humanidade e na verdade são a condicio sine qua non da viagem existencial que nos constitui por essência. Esses momentos de inspiração que os gregos chamavam entusiasmo, porque é de um Deus que se trata e nos enche a nós com a sua presença, deixando-nos fora de nós, sem sermos nós, expropriados de nós em terreno alienado e por outro lado, com a perceção de que nunca fomos tanto nós próprios como quando o entusiasmo se apodera de nós. E há momentos para todos nesta vida em que testemunhamos a simples alteração de tudo, a primeira vez de todas as primeiras vezes, o princípio que só por ser princípio é iniciático, o que consagra, o que abre o horizonte que nos configura. Há depois todos os encontros auspiciosos com os outros, com o que gostamos de fazer, com as nossas pessoas e as nossas coisas com toda a gente e com tudo com que fazemos viagem. Outros há que sentem a visitação do que os gregos chamavam musas, o espírito da música que ecoava a partir de presenças quase mediúnicas e que à distância primeiro e depois encarnando transformavam em metamorfose o que o artista, o poeta em sentido geral, tinha de dizer. O poeta depende dessas aberturas, do encontro com a verdade, dos momentos em que a verdade se descobre a partir de si, a partir do ser da vida que traz consigo a possibilidade de revelações, de momentos de ser, de momentos de verdade em que se percebe do que se trata, se sabe quem se é ao saber-se como se é, ao conhecer a essência dos outros radicada no mal, e sobretudo no bem que nos faz. Se só fossem esses os momentos em que se viaja, se passa para outra dimensão, só existiríamos autenticamente quando estamos fora, passados por assim dizer para um outro mundo, numa outra vida, mas que nos permite sermos nós próprios, sermos nós mesmos, embora expulsos do que os filósofos chamam o eu transcendental. Nessas aberturas o amor pode ser cantado, o encontro com alguém que simplesmente tudo muda, Deus por quem podemos viver apaixonados uma vida inteira sem nunca O termos visto, as alterações que o mundo sofre para a partir dele, com ele e nele só escutarmos música ou vermos quadros ou linhas escritas que são versos. O redimensionamento da vida pelo entusiasmo tudo muda. O poeta fica viciado numa lógica de adição desses momentos de revelação e não são necessariamente belos, dependendo da época da história do ser que configura a humanidade no seu tempo específico. Da epopeia à lírica, da lírica à tragédia há manifestações diferentes do ser da vida e da sua auscultação, por exemplo. A palavra revelação para enunciar a verdade tem de ser escutada na situação primordial em que acontece, no apocalipse, na revelação como apocalipse, quando, como diz Camões “Que dias há que na alma me tem posto. Um não sei quê, que nasce não sei onde; Vem não sei como; e dói não sei porquê.” A situação apocalíptica que está enunciada pela terceira pessoa do singular do presente do indicativo de incipio, incipere, incepi, inceptus, começa, remete para a expressão completa de Nietzsche incipt Tragoedia.

 

Incipit tragoedia. — Als Zaratustra dreissig Jahr alt war, verließ er seine Heimath und den See Urmi und ging in das Gebirge. Hier genoss er seines Geistes und seiner Einsamkeit und wurde dessen zehn Jahre nicht müde. Endlich aber verwandelte sich sein Herz. […]! Dieser Becher will wieder leer werden, und Zaratustra will wieder Mensch werden”. — Also begann Zaratustra’s Untergang.

 

O naufrágio é a metáfora para a própria existência. O latim diz sair para fora de si, estar continuamente saído para fora de si, mas o ponto de partida da existência não é o nascimento, o princípio dos princípios que admite certidão de nascimento. Ab utero matris incipi mori, diz Santo Agostinho. O primeiro momento implica um segundo e um terceiro, mas a contagem é decrescente. Não que haja um tempo fixo que temos para viver e cada dia é obliterado de forma clara. O tempo dos dias contados é qualitativo, como a própria contagem decrescente não é evidente e até pode dar-se o caso de ser contrariada por uma existência grávida de possibilidades à nascença e que à medida que o tempo passa cresce, torna-se mais o que era para ser. O facto da vida é que de modo inexorável nos encontramos desde sempre já nesta situação de possibilidade de contagem decrescente, mesmo que tivéssemos o tempo da eternidade e como nunca mais acaba o tempo da eternidade. A perceção do naufrágio é a perceção de que a sequência de agoras que é o tempo nada tem que ver com o tempo da evolução e do progresso, como se fosse sempre tudo a crescer, a adaptar-se, o triunfo dos mais fortes e aptos a viver. É antes outra coisa. Nem sequer é o contrário desta. O sentido do tempo não é o da sequência apenas que enquanto tal quer dizer que passamos de um antes para um agora e de um agora para um depois, de ontem para hoje e de hoje para amanhã. O sentido da sequência de momentos que atravessamos é o da passagem. O tempo passa simplesmente o que quer dizer que o sentido do tempo é o da irreversibilidade. O ser do agora, do mais breve instante que conseguimos isolar é na sua densidade temporal, o da irreversibilidade. Portanto, nada é ultrapassável ou repetível, porque tudo é irreversível. Não compreendemos sempre esta irreversibilidade mas quando se dá o caso de se ser possuído por um deus, por um entusiasmo, por um encantamento, podemos espreitar a paisagem em que navegamos não é a do caminho marítimo que zarpou para aportar noutras paisagens auspiciosas mas que estamos continuamente na situação de naufrágio, contra a qual a vida se encarrega sem dúvida de mascarar, mas o poeta tem a sua ética, como com o amor e a injustiça, os poetas deste tempo têm de denunciar o naufrágio, não para se congratularem com qualquer tendência suicida mas porque ainda não se inventou nenhuma poesia muda que calasse o que está a acontecer.

 

O Apocalipse de João de Patmos descreve os dias que aí vêm: καὶ ἐν ταῖς ἡμέραις ἐκείναιςζητήσουσινοἱ ἄνθρωποιτὸν θάνατον καὶ οὐ μὴ εὑρήσουσιναὐτόν, καὶ ἐπιθυμήσουσιν ἀποθανεῖν καὶ φεύγει θάνατος ἀπ᾽ αὐτῶν.” Apo. 9.6.

 

A vida que se busca é “alimento da arte”? pergunta o eu poético. É “sonho” a que se opõe “a dura caminhada na deriva”. Em que de quando em vez, contudo, “em transe” “faz do vivido/ oclusa obscuridade lume acendido.” Para concluir que “um poema nem vida é pela metade/ mas do descalabro é soma da inteira idade”. O tema da procura do poema que resulta da dimensão complexa da revelação é recorrente: “desbastar o que vezes se intui, e fica a pairar, descarnado, onde primeiro/ os reflexos se rechinam numa alegria/ atónita,/ encardindo de melancolia a alba que se expande até ser dia. ” Ou um pouco mais abaixo em que se descreve o momento fulgurante sempre em aparente contradição: “O que vês – um rio preto onde se alivia a treva, e a morte desagua como a cauda de um raio.” É o que permite “reafirmar-se a negação de todo o dado”. Não sem razão um “verso” é um “deus provecto”.

 

“Verso”, “melodia” visam a vida. E a vida é: “ilícita alegria, a plausível promessa de desova”, “vibrantes atonais”, “derrotadas danças e folias”. Ou como consta na pergunta de 6., “Em quantos sismos se desfecha um poema?”, o que requer meditar “na luz que traga opacidade”. Entre um poema e o naufrágio não há assim senão a mais alta similitude. O poema é a possibilidade de “mapear horizontes” (7.) ou como se lê em 9. “Os versos” “cartografam os abismos de cada idade./ Não há caminhos secretos para o poema./ Há hipóteses que se experimentam,/ tresmalhos, desvios retardados escondendo/ o que te aproxima um pouco mais/ da obscuridade que requer o poema.” O poema é “outro caminho onde a vida não é/ esse extravio que finda ao desabrigo/ de qualquer consolo” (11.) Ou na pergunta talvez derradeira de 12. “Em quantas ilhas floresce o desterro?/ Erros teus, cega fortuna, navegação/ sem carta ou mapa, só podia dar/ nesse naufrágio, distante dos portos/”.

 

É sob a égide da experiência da verdade, de como a verdade acontece, e se dá a sua descoberta, como revelação na situação de opacidade e obtenção de transparência que devemos, permita-se-me o verbo, ler José Luiz Tavares. A situação em que nos encontramos resulta da abertura da dimensão do outro mundo e da outra vida de onde se projeta o sentido e a possibilidade que provem da novidade abrupta do entusiasmo, do encantamento, de outrora e que agora nestes tempos indigentes revela a beleza como mascarada. Por defeito, encontramo-nos nas trevas, só uma perceção errada da realidade não capta a passagem inexorável do tempo, a contagem decrescente que jamais cessará, o naufrágio contínuo em direção ao abysmo.

 

“Nem prodígios, dos mais rasteiros,/ a dissiparem-se agora na hora mágica/ em que ameaças sempre fazer o mundo outra vez mundo, pelo seu movimento/ invertido, ínvio nas suas claras leis,/”. O poema provem “do âmago de tanto deserto, em voo desabalado/ que não teme o desconjuntar dos ossos ou o/ desorbitar das pupilas. A revelar-se, póstuma,/ na engrenagem, apenas sua indecorosa linhagem.” O poema que na sua “silenciosa superfície” (17.) “precisará de tentativas de decifração,/ porquanto claro é o itinerário do desastre”. Ou no poema máximo (29.) O que fica sempre por dizer/ faz-te voltar ao mar da palavra”. “A vida não é senão navegar/ até ao cais duma outra idade.” “O poema arde nas altas febres do fim./ Mas sem mapas, nem prévio confim,/ tudo falhas nos planos de antemão.”

 

Os 33 poemas de A Vida Nunca Vem a Jeito da Rima [Erlebnis Und Dichtung] não são manuais para uma estética do apocalipse configurada no naufrágio, no desastre, no esvaziamento de sentido, na asfixia do sentido. Por defeito, encontramo-nos na situação em que nem sequer nos deslocamos para fora como velhos que se deslocam entre as poucas divisões da casa onde podem ir, a mudança resulta da lentidão da mudança do olhar que deixa de ver a TV e passa a ver a janela ou em que tudo é o mesmo sob a lenta mudança do olhar. Por defeito, não suspeitamos que a viagem começou, a contagem decrescente não é a quantidade continuamente menor do tempo para viver, mas a qualidade do irreversível, os momentos de verdade, os momentos de ser mais extremos e radical só podem ser fixos por versos, superfície do Iceberg mergulhado no abysmo do não ser, das trevas, do oculto, do que não é visto por falta de transparência. A verdade não é o que se descobre das coisas, quando elas são descobertas ou descobrimos cientificamente o que quer que seja sobre elas. A verdade tem a sua origem e provem da vida das vidas, do que os filósofos chamaram ser. Do ser vem a verdade. A verdade do ser só se experimenta nessa dimensão onde se domicilia, não é captada pelo olhar ávido da curiosidade e não chega por um convite nosso, se é que queremos ou temos força para aguentar a verdade. Ser a ser é propriamente descobrir a verdade.

“Ser é somente naufragar” (30.)

 

Óbidos, 10 de Outubro de 2019.

*Professor na FCSH/UNL, membro do IFILNOVA, ensaísta e tradutor. Obteve o grau de doutor em Filosofia Antiga com a tese «A Areté como possibilidade extrema do Humano, fenomenologia da práxis em Platão e Aristóteles» (1998), pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa (UNL). Ensina na FCSH desde 1990, dedicando-se à Filosofia Antiga e à Filosofia Contemporânea. Foi Visiting Scholar na FD de Ribeirão Preto da USP, USF (Florida) e Oriel College (Oxford). Traduziu do grego as Odes Para os Vencedores (Quetzal, 2010) e as Odes Olímpicas (Abysmo, 2017) de Píndaro. De Aristóteles, traduziu ainda Os Fragmentos dos Diálogos e Obras Exortativas (INCM, 2014), As Constituições Perdidas de Aristóteles (Abysmo, 2019), tendo publicado ainda os ensaios «São Paulo: apocalipse e conversão» (Aletheia, 2014) e um «Um Dia Não São Dias» (Abysmo, 2017). Escreve semanalmente para o Hoje Macau. Apresentou o programa de TV sobre filosofia “É Um Clássico” na RTP. Publicou em Cambridge: “Reflections on Everyday Life” (2019).

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