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Opinião

Divagações filosóficas

Por: Arsénio Fermino de Pina*
Nas minhas leituras tenho o hábito de ir sublinhando e anotando nas margens das páginas o que mais me toca ou interessa, e, por vezes, assinalo na última página os números das páginas com interesse particular. Ultimamente, tenho-me entretido com os Testamentos (Antigo e Novo), do Prof. Frederico Lourenço, as obras de Espinosa (Ética, Tratado Politico-Teológico, e Tratado Político) e de Frederico Renoir sobre Espinosa, biografias de Trotsky e Estaline e as obras de André Comte-Sponville (Une Éducation Philosophique, A Filosofia, Petit Traité des Grandes Vertus e O Capitalismo Será Moral?). As primeiras leituras levaram-me a produzir artigos já publicados e a publicar. As do filósofo Comte-Sponville irão ajudar-me, a mim e aos leitores, a clarificar ideias, numa época em que abundam as falsas notícias e muitas pessoas deixaram de ler, contentando-se com as informações, desinformações muitas vezes embrutecedoras televisivas, dos telemóveis e da net.
Iremos abordar a moral e a ética, o capitalismo, o comunismo, o liberalismo e a social- democracia, entre outros assuntos relacionados. É bom de ver que essa variedade de assuntos não me permitirá aprofundá-los muito, limitando-me ao essencial. Quem quiser aprofundá-los terá de ir, já orientado, às fontes. Não me levarão a mal se tomar emprestadas expressões de alguns desses filósofos.
O inventor da palavra filosofia teria sido Pitágoras, que se dizia philosophos, por modéstia, para não aspirar ao título de sophos, isto é, de douto ou de sábio. Tinha razão: os filósofos não são sábios. Platão reconhecia: nem os sábios filosofam (não precisam disso), nem os ignorantes (não podem). Então, quem pode filosofar, quem pode pensar mais longe do que aquilo que se sabe e do que aquilo que se pode saber? Somente aqueles – todos nós – que estão entre os dois”.
Como iremos falar de ordens, teremos de nos socorrer de Pascal que as define magistralmente: “Uma ordem é um conjunto homogéneo e autónomo, regido por leis, confinando-se a um determinado modelo, donde deriva a sua independência relativamente a outra ou a várias outras ordens”. As ordens que nos interessam para o que queremos tratar são: 1ª Tecnocientífica,Jurídico-Política, 3ª Moral e 4ª Ética. Que limites para a primeira ordem, por exemplo, para a biologia? A biologia só nos diz como fazer, mas não se é preciso fazê-lo, diz-nos o que biologicamente é possível ou impossível, mas, como qualquer outra ciência é definitivamente incapaz de o fazer. Que limites para a economia? Tudo o que é possível será sempre feito, com a condição de haver mercado. Com a ordem jurídico-política, a mesma coisa, e o mesmo quanto à ordem moral e ética.
A Ética de Espinosa deu-me água pela barba para a entender, por a escrita ser à maneira dos geómetras, por definições, axiomas, proposições e demonstrações. Relativamente à ordem moral, há dois aspectos: ser moral é ocupar-se com o seu dever; ser moralizador é ocupar-se com o dever dos outros – o que é muito mais fácil e agradável. A moral nunca é para os outros. Tudo o que se faz pode ser chamado moral, e tudo o que se faz por amor, chama-se ética. A moral, ao contrário do que muita gente pensa, não necessita da religião, basta-lhe o cumprimento do dever. A religião é submetida à moral, não a moral à religião, quando muita gente julga que toda a moral é de origem religiosa.
Precisamos destas quatro ordens ao mesmo tempo, na sua independência pelo menos relativa, e na sua interacção (nenhuma pode funcionar sem as outras). As quatro são necessárias; nenhuma é suficiente por si.
Será que a economia tem moral? Claro que não, dado que as ciências não têm moral, nem tão pouco as técnicas. Sabemos que a moral nunca faz subir o preço, por exemplo, do café importado dos países subdesenvolvidos, nem qualquer outra mercadoria. A economia é tudo quanto diz respeito à produção, ao consumo e à troca de bens materiais – mercadorias e serviços -, tanto a nível individual e das empresas (microeconomia) como a nível da sociedade e do mundo (macroeconomia). Mercado é o encontro, ou local, da oferta e da procura. A economia de mercado é aquela que se pratica livremente (por meio da moeda e respeitando a concorrência) sujeita à lei da oferta e da procura. Basta uma lei ou um decreto para levar à morte milhões, por exemplo, a declaração de guerra, ao passo que nenhum decreto nem nenhuma lei pode fazer subir o preço do café em grão importado dos países do Terceiro Mundo, porque o preço é decidido pelos compradores, não pelos produtores.
Não é a moral que determina os preços; é a lei da oferta e da procura. Não é a virtude que cria valor; é o trabalho. Não é o dever que rege a economia; é o mercado. Será que o capitalismo é excepção, por ser a forma mais eficaz de criar riqueza? Sendo a moral individual, e dependendo o capitalismo da economia, teria esta de ser moral, o que, como vimos, não é. A moralidade só poderá partir de nós, dos operadores económicos e dos accionistas. Temos de concluir que a racionalidade imanente e amoral, quando não imoral, do capitalismo, prevalece sobre a moralidade teoricamente razoável do socialismo dito científico. Para que o comunismo, tal como Marx o idealizou, tivesse alguma hipótese de sucesso, seria preciso pelo menos uma coisa: que os homens deixassem de ser egoístas e colocassem o interesse geral acima do interesse particular. Como somos essencialmente egoístas e interesseiros, o comunismo falhou, embora tenha começado por ser um guarda-avançado revolucionário e humanista, para acabar numa colecção de velhos caquéticos e corruptos. O socialismo que Marx concebeu era moral. Foi o que votou os seus sucessores ao fracasso e à incapacidade. Mas não sejamos mauzinhos com a Revolução Comunista, porque foram os ideais de esquerda que lutaram pelo sufrágio universal, pela liberdade sindical, pela escola laica, pelos impostos sobre os rendimentos, pelas férias remuneradas. E a direita, nesses casos, foi, maioritariamente, contra. Mas isso não significa que a esquerda tinha e tem sempre razão em tudo.
Seria de prever, por sermos egoístas e interesseiros, que o comunismo se tornaria totalitário, como não se farta de nos recordar o patrício Casimiro de Pina (das poucas pessoas sérias e cultas, entre nós, a falar abertamente disso), pois seria preciso impor pela violência aquilo que a moral depressa se revelou incapaz de obter. Passou-se da utopia marxista do século XIX ao horror totalitário que todos conhecemos mas os comunistas fingem desconhecer ou negam ter existido.
O segredo do capitalismo é não pedir nada aos indivíduos para funcionar, a não ser que sejam egoístas, tratem dos próprios interesses, se possível inteligentemente, e tudo correrá relativamente bem, não no melhor dos mundos, mas no do mercado.
O erro de Marx foi, no fundo, pretender exigir a moral em economia. Acabar com a exploração do homem pelo homem, com a alienação, com a miséria, com as classes sociais, até mesmo com o Estado, e proporcionar a todos os indivíduos, fosse qual fosse o seu talento ou a sua profissão, a plena satisfação das suas necessidades, não era e continua a não ser, tarefa exequível. A famosa palavra de ordem “De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades”, os socialistas europeus rectificaram, “A cada um segundo o seu trabalho”, pondo de lado o Marxismo-Leninismo.
Pelo facto de ter errado com o comunismo não vamos atirar para o lixo tudo quanto idealizou e escreveu Marx, dado que a sua análise do capitalismo continua a ser, sob muitos aspectos, uma das mais esclarecedoras: o capitalismo é um sistema económico fundado na propriedade privada dos meios de produção e de troca, com base na liberdade do mercado e no assalariado. Aqueles que possuem a empresa (os accionistas) fornecerão, pois, trabalho – com base num contrato voluntário em troca de um salário – aqueles que não a possuem (os assalariados). Os accionistas terão interesse nele se os trabalhadores produzirem mais do que recebem (de salário); é o que Marx designa por mais-valia. Um sistema económico existe para criar riqueza, e isto com o menor custo social, político e ecológico que for possível. Há uma definição cínica de ladrões: não são mais do que capitalistas apressados.
Falando de Marx, vejamos o que nos diz da liberdade. Para ele não existe liberdade sem revolução, e a violência é uma condição da revolução. Essa violência tem origem no método materialista dialéctico da História, tendo em vista que o controlo dos meios de produção não poderá ser espontâneo. A violência será o elemento primordial da luta de classe para a conquista do poder político e produtivo. Dizia Marx que os filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é transformá-lo. Hemos de convir que submeter a política e o direito a uma utopia moralmente generosa, como Marx pretendia, como certamente pretendiam também Lenine e Trotsky, só poderia dar no que deu.
A abordagem da liberdade por Espinosa é diferente. O que me encanta em Espinosa não é nem a certeza das suas conclusões nem, aliás, a dúvida, mas o próprio pensamento de um jovem filósofo (faleceu aos 45 anos de idade) numa época de obscurantismo, fanatismos e perseguições religiosas e políticas. Argumenta Espinosa que tudo que existe no mundo é determinado por causas que, por sua vez, provocam efeitos. Encadeamento de causas aplica-se a tudo, incluindo às acções humanas, cujas causas nos são, as mais das vezes, desconhecidas. Espinosa contraria a ideia de Descartes (esse filósofo que desvencilhou o mundo do divino, do mágico e até do mistério), que defendia o livre-arbítrio, o qual permitiria fazer escolhas. Espinosa considera livre arbítrio uma autêntica ilusão. “Os homens enganam-se quando se julgam livres, e esta opinião consiste apenas em que eles têm consciência das suas acções mas são ignorantes das causas pelas quais elas são determinadas”. Espinosa define liberdade, por um lado como uma inteligência da necessidade, e por outro lado como uma libertação às paixões. O ignorante será escravo das paixões, e, depois, infeliz por estar subjugado aos seus afectos, sentimentos ou paixões, cujas causas ignora, ao passo que o sábio agirá movido pela acção da razão e será feliz, pois estará livre da servidão, da ignorância e de paixões desmedidas. O conhecimento racional é capaz de nos tornar livres e levar à felicidade suprema. A opinião e a imaginação constituem o primeiro género de conhecimento mas mantêm-nos na servidão (o tipo de conhecimento dos profetas bíblicos).
Voltando à moral diremos que é ela que nos deve governar (como indivíduo); a política governa legitimamente os outros (como grupos). A justiça existe em si, como queria Platão, ou, como dizia Espinosa, é somente a utilidade comum, tal como resulta, nos agrupamentos humanos, “de uma espécie de controlo com vista a não se prejudicarem mutuamente.”
Espinosa dizia que a resistência e a obediência são duas virtudes do cidadão. A obediência (certamente consentida) assegura a ordem, e a resistência assegura a liberdade. É por isso que a democracia não se reduz à soberania do povo; é também um esforço perpectuo dos governados contra o abuso do poder, sem o qual deixa de ser democracia, mas tirania do povo. A nossa sociedade tem necessidade de conciliar entre si estas duas virtudes. É ter simultaneamente o espírito da república e do laicismo. Obediência ao poder legítimo, respeito unicamente ao espírito. E resistência a toda a tirania. A tirania das ordens inferiores (barbárie) é a tirania do inferior. A barbárie liberal chama-se tirania do mercado.
Nem tudo que é legal é moral. Uma lei não diz o que é bem nem o que é mal: diz o que é autorizado e o que é proibido pelo Estado. O comércio, por exemplo, depende menos da moral, que é desinteressada, do que da economia, que não o é.
De tudo isso podemos concluir que o capitalismo não é moral. Cabe a cada um sê-lo, se puder. Mas como não podemos, é o mercado e a política que tornam possível que as pessoas vivam juntas – não apesar de serem egoístas, mas porque o são. Não se conte nem com o mercado nem com o Estado para serem morais em vez das pessoas.
Já o defini noutros artigos e resumo o que escrevi: o pensamento liberal é tudo aquilo que for favorável à liberdade do mercado (liberalismo económico) e às liberdades individuais (liberalismo político), sem eliminar uma certa intervenção do Estado. Ultraliberal, ou neoliberal, todo o pensamento que pretender reduzir o papel do Estado ao mínimo, isto é, às suas funções por excelência: justiça, polícia, diplomacia. O que pressupõe que se absteria de qualquer intervenção na economia, como defende, por exemplo, Milton Friedman. Julgar que tudo se vende e se compra é ser ultraliberal: o mercado bastaria para tudo pelo seu poder autorregulador, como garantem os ultraliberais. Claro que nem tudo se vende, nem se compra, nem tudo pode ser sujeito ao mercado, que é preciso resistir à mercantilização de toda a vida, individual e colectiva. Toda a gente tem necessidade de um Estado para organizar de gerir a parte não mercantil da solidariedade, para velar, precisamente pelo que não se vende; é a função da política estatal. A economia começou a existir antes do Estado. Primazia da política, certamente, mas primado da economia. Primado da economia foi dito por Karl Marx, mas primazia da política, que também faz parte do pensamento marxista, embora não o tenha dito expressamente.
Falamos e ouvimos falar, bastas vezes, da igualdade de todos os seres humanos em direitos e dignidade, mas já não em igualdade social ou económica, precisamente por vivermos em sistema capitalista, que a exclui. Uma sociedade onde houvesse igualdade de bens seria, obviamente, justa, mas uma quimera. Temos o exemplo da URSS. Resta-nos, pois, sem renunciar à igualdade social e económica, limitar a desigualdade, compensá-la por uma política social de distribuição de serviços públicos e de igualdade de oportunidades. A isso se chama social-democracia, menos gloriosa, mas mais eficaz. Por isso é que o socialismo europeu pôs de lado o marxismo com as suas duas vertentes: revolucionária e violenta para se apoderar do poder.
Já vai longa a conversa e temos de terminar.
Como vimos, moral e política não se confundem. A moral é pessoal e solitária, a política é colectiva. A moral, em princípio, é desinteressada; nenhuma política o é. A moral é universal ou tende a sê-lo; toda a política é particular. A moral fixa os fins; a política ocupa-se sobretudo dos meios. Por isso há necessidade das duas e da separação entre ambas.
Parede, Outubro de 2019
*(Pediatra e sócio honorário da Adeco)

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