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Economia

Turismo: Oli Soncent, uma paixão à primeira vista

Quem visita São Vicente, seja de passagem ou mais a fundo, num passeio pela ilha, e em contato com as comunidades mais distantes da tradicional “morada”, como Salamansa, Calhau, Baía ou São Pedro, facilmente se deixa envolver pelas paisagens e se apaixona pela alegria e simpatia das gentes da terra. A tal “morabeza” que é vendida nos postais turísticos e que é possível se encontrar aqui. Esta é a opinião de vários turistas com quem A NAÇÃO falou informalmente em São Vicente.
“São Vicente é apaixonante”, dizem sem deixar de elogiar também a “beleza” da Ilha das Montanhas (Santo Antão). Apesar de que na opinião de vários operadores turísticos ouvidos pela nossa reportagem “ainda há muito por fazer” para desenvolver o turismo na ilha do Monte Cara, não restam dúvidas de que hoje em dia São Vicente se assume como um destino turístico singular, e que vai muito além de um local de passagem de turistas de montanha para Santo Antão.
Se olharmos para os dados do Instituto Nacional de Esta-tísticas relativamente ao segundo trimestre de 2019, em que os estabelecimentos hoteleiros do país acolheram cerca de 179 mil hóspedes, podemos constatar que São Vicente recebeu apenas 5,8% desses hóspedes, ocupando o quarto lugar no acolhimento de turistas em Cabo Verde, numa tabela que é liderada por Sal, Boa Vista e Santiago. Isto, num total de 48 estabelecimentos hoteleiros registados na ilha no inventário de 2018 e 5,7% do total das 21 mil e 46 camas disponíveis em 2018 no país.
Esse inventário atesta que São Vicente tinha, no final de 2018, 9 hotéis, 9 pensões, uma pousada, 3 hotéis apartamentos e 26 residenciais. Números que os operadores turísticos acreditam que ainda têm margem para crescer, quer no acolhimento, quer na capacidade de alojamento. Mas para isso, dizem, é preciso, entre outras coisas, fundamentalmente, qualificar a oferta com produtos diferencia-dos, aumentar o número de voos e  companhias para a ilha e aumentar a capacidade de alojamento.
Entre a qualificação da oferta do destino turístico São Vicente, levada a cabo ainda de forma muito individual pelos operadores locais, têm estado preocupações ligadas ao turismo sustentável e à inovação no tipo de produto que se oferece a quem visita a ilha, para além dos habituais nichos como a cultura, através do Carnaval e da música, que tem na marca “Cesária Évora”, o principal foco de atracção.
Terra Lodge
É precisamente num contexto de turismo sustentável, com preocupações ambientais e de preservação do património histórico que nasceu o hotel “Terra Lodge”, localizado no alto de Santo António, Mindelo.
A ideia e conceito partiu de Théo Lautrey que há vários anos está ligado ao turismo de aventura em Cabo Verde, através da Nobai. O hotel, conta, foi construído com foco na preocupação pelo respeito ambiental e integração estética da infraestrutura na paisagem.
“A ideia foi a de conservar e valorizar uma casa da época colonial no centro do espaço, de acordo com a nossa preocupação de conservar e valorizar o património histórico de São Vicente, em vez de o destruir e substituir por prédios”. Quem lá vai, facilmente se rende a cada pormenor da construção, feita em módulos, tal como as casas que foram surgindo em torno das zonas altas. Aqui usam-se painéis solares e recicla-se água e valoriza-se mui-to o “saber fazer” local.
“A ideia passou por injectar dinheiro do investimento na economia local e importar o menos possível. Com tudo isso, o nosso objectivo era criar um lugar onde os turistas podiam sentir-se em Cabo Verde, e não num hotel de formato standard, como se encontra cada vez mais com a mundialização e estandardização das construções”, explica Théo. A maioria dos turistas são franceses e alemães mas há muitos locais que utilizam o bar panorâmico, com uma paisagem de cortar a respiração, com vista para o Monte Cara.
Destino por si só 
Hoje Théo defende que Mindelo não é só um local de passagem para São Vicente, mas assume-se também como um destino por si só. “Para algumas actividades ditas de ‘nicho’ é um destino, como o kite surf em Salamansa e actividades de mergulho que alguns centros disponibilizam e, ainda, alguns projetos de turismo comunitário etc. Também pelo Carnaval há um número significativo de turistas que vêm unicamente para São Vicente”. A isso, acresce o turismo de cruzeiro que, na sua óptica, acontece de “forma muita passageira”, porque os turistas permanecem apenas algumas horas na ilha, “muitas vezes sem consumirem muitas coisas antes embarcarem”.
Aliás esta foi uma das queixas apontadas por outros operadores ouvidos, sobretudo quando há cruzeiros aos domingos e “está tudo fechado no centro”, como afirmou Margarida Almeida, proprietária da pousada Raiar. “Muitos cruzeiros chegam ao domingo e os turistas andam aí a vaguear porque não têm nada que fazer. As lojas estão fecha-das, os mercados também e não há actividades”, defende Margarida.
Já Théo lembra ainda que há uma parte importante de turistas que estão de passagem para Santo Antão, mas não no sentido “pejorativo” da palavra. Pois, como diz, os turistas passam em São Vicente não só porque são obrigados, mas também porque é uma vertente de Cabo Verde que querem conhecer, antes de seguirem para Santo Antão.
Preservar o património histórico e cultural
Os dois destinos acabam por ser complementares, mas considera que ainda há muita coisa a fazer para que os turistas passem mais tempo em São Vicente. Para isso, defende, é preciso saber “preservar mais” o património histórico, natural e cultural”.
“Um turista viaja e fica num determinado lugar para apreciar um determinado conteúdo. Mas, São Vicente, com a sua política de destruição de património arquitectónico antigo (em que se transformam praças e monumentos em galerias comerciais e hotéis) está a perder, aos poucos, o seu conteúdo e atractividade”.
Por outro lado, considera que o tratamento de algumas manifestações culturais no âmbito do turismo de cruzeiro pode ser contra-producente com o que realmente importa já que pode comportar ris-cos dada à sua incompatibilidade com outras formas de turismo.
“Por exemplo, quando um desfile de mandingas do Carnaval é organizado fora de época para divertir turistas de cruzeiro, a cultura acaba por ser transformada em folclore turístico e isso pode afastar outras formas de turismo mais sustentáveis, quando se procura justamente a autenticidade”.
A esses alertas juntam-se as falhas na fiscalização da extração de inertes e aquilo a que chama de “criação de lixeira selvagem” que tem impactos no meio ambiente e prejudica a atractividade da ilha.
Recuperar caminhos para turismo de aventura
Dada a sua vasta experiência no turismo de natureza, Théo Lautrey acredita que é possível desenvolver o turismo de aventura em São Vicente, se forem criadas condições para tal. “Há uma pequena caminhada até o Farol de Dona Amélia, uma volta entre Calhau e Praia Grande. A parte baixa do antigo caminho vicinal de Monte Verde foi requalificada, também. Esses itinerários de 45 minutos a uma hora, infelizmente, são apenas utilizados para tapar buracos e não como finalidade de um dia de excursão”. Mesmo não tendo o potencial de Santo Antão para o turismo de natureza, São Vicente pode, na óptica deste operador, aproveitar as potencialidades existentes. “Por exemplo, se aqueles caminhos de Baleia, Selada de Baleia, Topin d’Morto e Feijoal Preto fossem recuperados, teríamos um itinerário que podia justificar que um grupo de turistas ficasse mais um dia em São Vicente porque é espetacular caminhar nessa zona, onde, de um lado, temos a vista do oásis de Madeiral e, do outro lado, a Praia Grande. Isso é algo que não existe nas outras ilhas”.
Falta de ligações
Se por um lado é preciso desenvolver produtos diferencia-dos e mais atractivos, com base na cultura e património histórico e urbanístico, por outro, quando se fala de constrangi-mentos turísticos de São Vicente, os operadores coincidem no que diz respeito à falta de ligações internacionais, devido à hegemonia da TAP e não só.
“Esses constrangimentos vereficam-se, tanto em relação aos voos internacionais, por causa dos preços elevados, como também nos voos domésticos por causa da mudança de horários, da falta de disponibilidade e dos preços proibitivos”, lamenta.
Nas ligações internacionais põe-se ainda o problema das fi-las de espera devido ao pagamento da Taxa de Segurança Aeroportuária (TSA).
“Mesmo para quem já contactou uma agência e fez o pagamen-to da TSA com antecedência, ain-da assim, quando chega ao país, tem de ficar na fila. Isto sem falar dos problemas que as pessoas en-frentam quando não encontram esse pagamento no sistema e têm que pagar outra vez”, lamenta.
Esse operador diz que entende que o Governo “precise de encher os cofres do Estado”, mas alerta que essa cobrança deve ser feita de uma forma que não prejudique e para que o turista não fique com uma experiência negativa.
As dificuldades também são extensivas ao transporte marítimo. Segundo Théo Lautrey se a rede marítima estivesse “mais bem organizada”, São Vicente poderia, a médio prazos, servir de plataforma a São Nicolau da mesma forma que serve de plataforma a Santo Antão, ou seja, a Ilha do Monte Cara também “podia receber gente interessada em descobrir São Nicolau que tem um potencial muito grande e as duas ilhas poderiam aproveitar desse desenvolvimento”.
A empresária Margarida Almeida, da residencial Rair, também defende melhorias quer nas ligações aéreas, quer nas marítimas, especialmente para São Nicolau, sua terra Natal.
“Estou a gerir a residencial há 5 anos. Era da minha irmã e ela quis que eu ficasse, apesar da mi-nha vontade de ir para São Nico-lau, mas por falta de condições de transporte para a ilha, acabei por ficar aqui, sempre na esperança de um dia regressar à terra de Chiquinho. Mas até hoje os transportes não melhoraram”.
Concorrência desleal
Margarida já foi emigrante na América, Portugal e Londres e hoje domina bem várias línguas, o que facilita o dia a dia com os turistas. “Recebemos alemães, franceses, espanhóis e holandeses. Alguns ingleses e, de vez enquanto, americanos”, revela.
À semelhança de Théo, também ela defende que é preciso investir mais na criação de actividades e produtos turísticos ligados à cultura e património para fixar turistas em São Vicente, “por mais tempo”.
“Muitos querem conhecer São Vicente mas o maior foco é San-to Antão (90%). Alguns ficam dois ou três dias para conhecerem São Vicente, o que a meu ver é muito pouco para se conhecer a ilha na sua totalidade”, argumenta. Margarida mostra-se contudo preocupada com a concorrência desleal de casas e quartos particulares em São Vicente.
“Há vários locais em funciona-mento, nomeadamente casas particulares que recebem turistas de forma ilegal visto que não pagam taxas e nós pagamos”, denuncia. Essa empresária acredita que os turistas “estão mais propensos a optarem pelo mais fácil e mais barato” como acontece com o Airbnb. “Existem muitas casas e quartos no Airbnb em São Vicente, como acontece em todo o mundo. Só que, dada a dimensão doutros países, há menos controlo. Mas, acredito que aqui seja mais fácil controlar e, ademais, trazem mui-tos problemas porque trata-se de uma concorrência desleal. Nós que pagamos impostos, podíamos estar com mais movi-mento de clientes e, com isso, melhorar o pagamento aos nossos funcionários, mas não há como fazê-lo, visto que há dias em que não temos sequer turistas”, conclui, apelando às autoridades para uma maior fiscalização.
Texto: Gisela Coelho/Foto: @Terra Lodge
*Esta reportagem foi publicada no Caderno Especial São Vicente edição nº635 do Jornal A NAÇÃO

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