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Opinião

É privilégio encontrar com o Papa ou ter um escravo beatificado?

Por: Milton J. Monteiro*
Antes do encontro, postou-se na rede social: “terei o privilégio de me encontrar com Sua Santidade”. Depois, em entrevista à Rádio Vaticano, repetiu-se: “é o segundo encontro que tenho com o Papa Francisco, portanto, é um privilégio para mim e para Cabo Verde”. No primeiro, o privilegiado foi a Igreja. Como pontua o observador internacional Pew Research Center, “a concordata entre a nação insular de Cabo Verde e o Vaticano concedeu privilégios à Igreja Católica que não foram disponíveis para outros grupos”. Mesma conclusão do The U.S. Department of State: “o governo continuou a conceder privilégios à Igreja Católica que outros grupos não receberam, incluindo em instituições de ensino, em instalações governamentais e acesso à mídia” (Cabo Verde 2018 International Religious Freedom Report).
Ou seja, privilégio é a palavra que reina nas relações do país com a Igreja. Já a possível beatificação do “Negro Manuel”, ela seria um privilégio para nós? A resposta está na História. Então, viajemos no tempo:
Estamos nos inícios do século XVII, provavelmente em 1604, cento e sessenta anos após o primeiro leilão de escravos em Portugal – oito de agosto de 1444. Não se conhece a história com exatidão, mas naquele ano, na Costa dos Rios, nasce o bebê. Não sabendo que o tráfico negreiro ajudou a financiar os descobrimentos e nem que ele está em pleno vapor, inclusive com suporte dos irmãos da terra, os pais comemoram livremente a vinda de mais um filho.
Passaram-se vinte e três anos na aldeia onde os filhos da África perambulam alegre e tranquilamente. O menino cresceu, dja da homi, quem sabe casou e teve filhos. Um dia, quiçá, ainda no raiar do sol e a família dormindo, de repente, escuta-se gritos de uns demônios que chegam atirando: é o inferno invadindo pela milésima vez mais uma aldeia. Envolvido pelo desespero que toma conta do lar, ele abraça o kodé, beija a esposa e sai ao encontro do pai para juntos lutarem. Tarde demais – o patriarca está acorrentando entre centenas de pais e filhos, crianças, mulheres e adultos. Ainda lutando, com gritos inexplicáveis na alma, escuta um estouro e, ao voltar os olhares, vê a mãe caindo, gemendo e dando seu último suspiro, pois a bala de um arcabuz atingiu em cheio o seu peito. Logo, percebe que os brancos vêm “senão para roubar, matar e destruir” (Cif. Jo 10:10). Tenta lutar, mas não adianta, são muitos; tenta escapar, mas é pego… 
A imaginação, por trágica que seja, não consegue traduzir a dura realidade de como poderia ter sido aquele dia para Manuel. Por sorte ou azar, ele não perde a vida e nem entra nos cálculos de Joseph Miller: “ainda na África, entre 40% e 45% dos negros escravizados morreriam no trajeto entre as zonas de captura e o litoral. Dos restantes, entre 10% e 15% pereciam durante o mês que, em média, ficavam à espera do embarque nos portos africanos”. Diferente destes, ele vence o libambo e chega em uma das 188 Portas do Não Retorno.
Semelhante aos 12,5 milhões de africanos, ele é embarcado em um navio negreiro, rumo ao mundo português, que estava sendo construído a base de sangue, carnificina e destruição da África. Diferente do 1,8 milhão que morreu ainda na travessia, isto é, 10% dos embarcados, o cativo sobrevive e chega ao Brasil, depois de um mês enfrentando o Atlântico, o “grande cemitério de escravos”, e “a navegação mais dolorosa que existe no mundo”. Ele não entrou na cifra dos catorze cadáveres que eram atirados ao mar todos os dias, ao longo dos 350 anos da escravidão portuguesa. Inacreditavelmente, os corpos lançados sem cerimônia eram imediatamente devorados por tubarões, que mudaram sua rota migratória para seguir as “tumbas flutuantes”.
Também, diferente dos 5% que perderam a vida no desembarque, processo de venda ou transporte até os locais de trabalho, e dos mais 15% que faleceram nos três primeiros anos de cativeiro em terras americanas, Manuel sobrevive, entra nos 40% dos 24 milhões de africanos cativos que sobreviveram ao final da extensa jornada entre a África e as Américas.
Mas, antes de chegar Pernambuco, ele passa em um dos principais entrepostos de venda de escravos – Ribeira Grande, sede da primeira diocese da costa ocidental africana. Entre dezenas de tempos e tabernas na Rua Banana, sem entender a língua, acorrentado, faminto e machucado, é levado para a pia da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, onde é rapidamente batizado, talvez, por um dos primeiros jesuítas que acabaram de chegar ao arquipélago. O processo de ladinização começou e o verdadeiro nome é apagado dos registros. Revoltante é saber que esses próprios jesuítas vendiam escravos para Cartagena das Índias. E não só, por exemplo, “em Angola, os jesuítas tinham, em 1558, mais de 10 mil escravos trabalhando em seus quinhentos sítios e fazendas”.
Finalmente, em 21 de março de 1631, o navio que transportava Manuel chegava a Buenos Aires. Doado como mercadoria, ele chega em Luján, onde acontece o suposto milagre. Morre em 1686 e a escravidão reinaria ainda por um bom tempo.
Face ao exposto, é privilégio encontrar com o Papa ou ter um africano beatificado? Nenhum dos dois. 
Deixando o feeling pessoal, para não dizer estatal, o cidadão católico não se confunde com o burocrata laico. O encontro era entre dois chefes de Estados, apesar de um laico e outro não. Os privilégios precisam acabar. Já a beatificação, ela também não seria privilégio, mas sim uma gota de alento num oceano infernal que foi acometido por séculos contra os filhos da África, com o aval, apoio e envolvimento expressivo e lucrativo da Igreja e dos seus líderes:
As portas abertas remetem-nos ao ano de 1418, quando a bula papal Sane Charissimus dá aval às navegações portuguesas, conferindo-lhes status de cruzadas contra os mouros e os infiéis na África. “Em um século, onze diferentes bulas papais concederam privilégios à Ordem de Cristo, incluindo [..] autorização para capturar e vender escravos”. Dum diversas é de 18 de junho de 1452, Romanus Pontifex, carta régia do imperialismo português, é de 8 de janeiro de 1455, a Inter Coetera é de 13 de março de 1456.
Segundo consta no manuscrito Crônicas do descobrimento e conquista da Guiné, quatro dos 235 cativos do primeiro leilão foram doados às igrejas e um vendido noutro dia pelo padre para comprar ornamentos novos do altar. Dois anos mais tarde, uma frota de nove caravelas vai à caça, sendo um pertencia ao bispo do Algarve, dom Rodrigo Dias, que animado com as doações decidira se tornar sócio no comércio negreiro. E não foram poucos os propulsores da maldita ideia de salvação das almas da escuridão da barbárie e do paganismo para a entronização no catolicismo e na civilização portuguesa. 
Juntando às demais citações deste artigo, o brasileiro Laurentino Gomes, no seu best-seller “Escravidão”, leitura obrigatório para todos, mostra em detalhes que “durante cerca de quatrocentos anos, padres, bispos, cardeais e Ordens religiosas não apenas apoiaram como participaram do tráfico de escravos e lucraram com ele. Nesse longo período, foram escassas as vozes dentro da hierarquia Católica que se ergueram contra o cativeiro dos africanos. Havia exceções, mas eram relativamente raras”.
*Cabo-verdiano, radicado no Brasil, é membro-fundador do Observatório da Liberdade Religiosa (OLIR Brasi) e Professor-Doutor efetivado na Universidade Federal do Tocantins 

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