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Opinião

Os beneficiários da Previdência e o direito à saúde

Por: Marcos Oliveira
Entre o INPS e os seus beneficiários existe uma relação contratual que determina  deveres e direitos de cada parte. O INPS, na  qualidade de entidade gestora da proteção social obrigatória dos seus associados, tem a  incumbência  de assegurar as prestações em quantidade, qualidade e oportunidade. Este princípio deve ser igualmente observado por todos aqueles que, com  o Instituto, tenham uma relação contratual de prestação de serviços, especificamente no domínio de saúde.
Será que na prática esses princípios são plenamente realizados? Veremos isto mais à frente. Mas antes, convém olhar para o enquadramento legal desta questão.
O artº 53º do Decreto Lei 5/2004 com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 51/2005 que regula a Previdência Social obrigatória, estabelece que a assistência médica, o internamento hospitalar e os meios auxiliares de  diagnóstico, são garantidos pelo Estado através dos serviços públicos de saúde, com os quais o INPS  celebra acordos específicos. 
Para cumprir o acordado, o INPS transfere  mensalmente para as unidades prestadoras dos  cuidados uma compensação financeira. Segundo o boletim estatístico inserto no site do INPS, o montante transferido no primeiro trimestre de 2019 foi de 99 184 milhões ECV e representa 15% das despesas do ramo de doença e maternidade no citado  período. 
A partir deste montante se infere que a compensação anual, sem a revisão periódica, chega aos 400 mil contos. Perante este facto, o INPS coloca-se como um dos importantes pilares do financiamento da saúde, sendo ainda importante realçar que a sua contribuição não se restringe apenas à referida compensação.
Em Dezembro de 2018,  o diretor do Hospital Agostinho Neto, da Praia, tornou público, através do jornal A Semana online, o orçamento que era de 530 milhões ECV, sendo 30% proveniente  do INPS, 40% do OGE e 30% das taxas moderadoras e cobrança direta às famílias.
A complementaridade do privado 
Com a mudança na política  de saúde em Cabo Verde, emergiu o setor privado que, concomitantemente, presta os cuidados à generalidade dos cidadãos e aos beneficiários do Instituto em particular. 
Tem sido notório o desenvolvimento deste setor e, ainda bem, não apenas pela complementaridade mas também, por mais absurdo que seja, pelas respostas que em certos casos superam o público. Não se trata de nenhuma fantasia. Eis alguns exemplos: não realização de TAC, Ressonância Magnética (RM), Cistoscopia, entre outros., nas unidades de saúde públicas mas, em contrapartida, estes serviços estão todos disponíveis no privado.
Por isso, andou bem o legislador ao estabelecer que o INPS pode também estabelecer contratos com os prestadores privados. O pagamento  pelos serviços é feito por cada ato médico prescrito. 
As especialidades de estomatologia e de certo modo a oftalmologia, desde sempre tiveram recurso ao privado cujos custos são compartilhados pelo beneficiário e o Instituto. Para o resto das valências médicas, a comparticipação do Instituo é fortemente condicionada a um conjunto de regras e de incertezas que, perante as dificuldades, o beneficiário chega muitas vezes a desistir da procura de comparticipação financeira junto do INPS.
Quais são essas regras ou condicionantes? Em primeiro lugar, os serviços públicos de saúde devem declarar que o ato prescrito não é realizado na unidade de saúde. As razões apresentadas são diversas, podendo ser por avaria de equipamentos ou sua inexistência, falta de reagentes, etc., etc.  Muito surreal.
Também se declara que o exame é realizado mas está sujeito a uma fila de  espera,  havendo casos em que o tempo chega a ser igual ou superior a 2 anos, como por exemplo acontece com o exame de colonoscopia e não só. Deixo ao leitor o juízo de valor  desta situação. 
O custo de alguns dos exames referidos situa-se muito acima de uma dezena de milhar de escudos. Tive conhecimento que um desses exames que não era realizável no público, no privado,  custou ao beneficiário um valor superior a 50 mil escudos. A tentativa de contar com a comparticipação do INPS foi de pronto recusada num dos serviços de atendimento do Instituto.
É caso para perguntar como ficaria o direito à saúde da pessoa, caso não pudesse contar com a mobilização familiar para custear a intervenção prescrita? Provavelmente, se punha a possibilidade de evacuação que, por definição, deve ser feita sempre que estão esgotados os recursos locais. Quanto e quem custearia a evacuação? De certeza que o custo dessa evacuação seria superior ao montante acima referido.  
É evidente o rombo financeiro que o beneficiário ou familiar sofre sempre que tenha que recorrer ao privado na busca da saúde.
Recusa da comparticipação do INPS
A justificativa da recusa da comparticipação que o INPS apresenta é pouco ou nada plausível como,  por exemplo, que o exame realizado ou a realizar, não consta  da lista de atos reembolsáveis fixados aquando do acordo ou que não emite credencial para o tipo de prescrição  proposto. É o caso da Ressonância Magnética (RM) ou eventualmente outro exame. Que diferença há entre o TAC e a RM para justificar a comparticipação no primeiro e não no segundo?
A Ressonância Magnética como meio de diagnóstico pode ser recente em Cabo Verde mas não é noutras paragens. Consta  que o seu desenvolvimento vem dos anos 70/80.  
Porém, não se pode negar a evolução registada no sistema de  saúde  pública em Cabo Verde. Certamente seria possível  estar  melhor com maior priorização de certos investimentos essenciais. Como justificar que  o hospital da Praia esteja há mais de 3 anos sem aparelho TAC.
A ambiguidade das declarações dos serviços de saúde sujeita o beneficiário a um critério subjetivo do INPS, cujas consequências são, entre outras, o indeferimento do pedido de comparticipação.
 Do lado da unidade pública de saúde existe eventualmente conveniência de ordem material para não haver reembolso ao beneficiário porque, esse valor, é deduzido da compensação mensal a pagar pelo Instituto. Só assim se pode entender a ambiguidade da declaração.
INPS deve adoptar uma nova atitude

Quais as perspetivas para melhorar o estado das coisas? Em recentes declarações à agência noticiosa cabo-verdiana, Inforpress, 19 do corrente mês, o Diretor do Hospital Agostinho Neto, na Praia,  disse não ter havido verbas para investimento e que, na data, desconhecia o orçamento de investimento do hospital central para 2020. 
Significa que continuarão as dificuldades no atendimento dos beneficiários, empurrando-os cada vez mais para o privado, com as  indesejáveis consequências já referidas, tanto do ponto de vista financeiro, como comprometendo o direito ao acesso à saúde . 
O beneficiário do INPS não pode continuar a contribuir duplamente para o financiamento da saúde através, por um lado,  das quotizações e impostos pagos e, por outro lado,  através da compra de serviços ao privado.
Face às pressões a que se sujeita o financiamento da saúde, a problemática da compensação será recorrentemente debatida entre as duas entidades (INPS/MS), com vista ao seu aumento. Por um lado, o Estado deve encontrar novas fontes de financiamento da saúde e, por outro lado, o INPS deve adotar uma nova atitude com vista a avaliar a conformidade dos termos e objetivos fixados no acordo com o Estado. Deve, igualmente, avaliar qual é o grau de satisfação dos seus beneficiários em relação aos serviços  prestados no sector público.
 Só assim, o INPS, estaria, com assertividade, a defender os interesses dos seus beneficiários e, quiçá, interpelado a fixar novos termos dos acordos como o setor público e gerar espaço para desenvolver novos paradigmas no relacionamento com os privados. Assim fazem outros regimes onde a proteção da saúde ainda esteja dependente do vínculo ao direito à proteção social obrigatória. 
As soluções existem e creio existirem estudos para o efeito pelo que falta aprofundar as diferentes respostas e recomendações que contribuam para um melhor cuidado de saúde, quer seja prestado pelo setor público, quer pelo privado e, no caso, com maior comparticipação do Instituto.
Reconheço que as possíveis soluções não podem ameaçar a sustentabilidade do sistema. Porém, o espetro da sustentabilidade não pode ser sempre uma espada sobre a cabeça do utente do sistema cerceando os seus direitos.
Por isso mesmo,  reconhecendo o papel e a importância do setor da saúde pública neste país, defendo que é tempo de o INPS “afrouxar” um pouco o colete de força que o amarra ao sistema de saúde. Para ser realista e responsável falo de “afrouxar” e não “libertar”.

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