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Opinião

A desigualdade é uma escolha de políticas públicas e não uma inevitabilidade

Por: Alfredo Teixeira* 
Subsídios do Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD de 2019 
A desigualdade está a tornar-se uma das características que define o século XXI. Está, igualmente, a desencadear tensões económicas e sociais crescentes em todo o mundo. Vemos isso quase diariamente nos écrans das nossas televisões e telemóveis, nas manifestações que vêm ocorrendo nas principais capitais do mundo, nos longos episódios de agitação social que atormentam muitos países em desenvolvimento e, ao extremo, no crescente número de incidentes de violência política e terrorismo. Estes acontecimentos são muitas vezes motivados por um profundo sentimento de injustiça e reclamações por parte de quem se sente preterido ou deixado para trás, devido à transformação que assolou a economia global nas últimas décadas. No entanto, esta não é uma característica inevitável no mundo de hoje. A desigualdade é, em grande medida, o resultado de escolhas de politicas publicas. Por conseguinte, é possível tomar medidas para corregi-la.
As duas primeiras décadas do século assinalaram progressos notáveis na redução das privações extremas. Hoje, uma criança nascida num país com baixo desenvolvimento humano pode viver até aos 59 anos de idade, comparativamente a apenas 50 anos de idade, há vinte anos, em 1998. Além disso, na maioria dos países, as desigualdades nas capacidades básicas estão a diminuir, embora ainda haja muito por fazer. Por exemplo, o aumento da esperança de vida , nos países de baixo desenvolvimento humano, foi, entre 2005 e 2015, quase três vezes superior ao dos países de desenvolvimento humano elevado, impulsionado por uma redução da mortalidade infantil nos países em desenvolvimento. Os países com menor desenvolvimento humano estão também a recuperar o atraso nos níveis de ensino primário.
No entanto, apesar do progresso do desenvolvimento humano básico, o mundo não está no caminho certo para a erradicação das privações extremas na área da saúde e da educação até 2030, quando ainda se espera que 3 milhões de crianças menores de 5 anos morram todos os anos e 225 milhões de crianças não frequentem a escola. Além disso, as desigualdades no aumento das capacidades, especificamente no tipo de capacidades que irão impulsionar o sucesso no século XXI, permanecem muito elevadas e, em alguns casos, estão a aumentar. Por exemplo, nos países de baixo desenvolvimento humano apenas 3% dos adultos possuem educação superior, contrapondo com 29% nos países desenvolvidos. Relativamente ao acesso à tecnologia, nos países em desenvolvimento existem 67 subscrições de telemóveis por 100 habitantes, metade da quantidade de subscrições nos países com desenvolvimento humano muito elevado (132 por 100 habitantes). Em relação às tecnologias mais avançadas, tal como no acesso à banda larga fixa, há menos de uma assinatura por 100 habitantes, em comparação com 28 assinaturas nos países com desenvolvimento humano elevado.
É neste contexto que o Relatório de Desenvolvimento Humano 2019 do PNUD foi apresentado no dia 09 de Dezembro em Bogotá, na Colômbia. O relatório procura reformular os actuais debates sobre a desigualdade, apresentando novos dados e análises sobre as tendências emergentes da desigualdade, tendências que, segundo o relatório, estão a tornar o mundo mais desigual e de uma forma mais enraizada. O Relatório fá-lo adoptando uma abordagem multidimensional, examinando as desigualdades de rendimento e de capacidades, incluindo em áreas como a saúde, a educação e o acesso à tecnologia. O relatório examina ainda as desigualdades profundamente enraizadas, concentrando-se no género, bem como o impacto das alterações climáticas e da 4ª revolução industrial nas tendências globais de desigualdade.
À semelhança dos relatórios anteriores sobre o desenvolvimento humano, o relatório de 2019 possui um forte enfoque político. Apresenta aos decisores políticos opções políticas para desconstruir as causas sistémicas da desigualdade, muitas vezes profundamente enraizadas, ao mesmo tempo que elimina a privação extrema, apetrechando a todos com meios para viver com dignidade, gerir as consequências do aquecimento do nosso planeta e beneficiar de avanços modernos em tecnologias avançadas. Para o efeito, o relatório apresenta uma taxonomia política extremamente inovadora para combater a “crise da desigualdade”, com intervenções que podem ser executadas ao longo do ciclo de vida das pessoas e em todos os domínios da economia e da sociedade.
O princípio central do Relatório de Desenvolvimento Humano do presente ano é o de que a desigualdade não é inevitável e, portanto, pode ser corrigida . No entanto, será mais difícil corrigir a actual trajetória autodestrutiva da humanidade se não forem tomadas medidas urgentes para abordar as suas causas profundas. Isto é evidente quando se observa a crise climática iminente, que já está a afectar as comunidades mais pobres de forma severa, aumentando as suas privações e vulnerabilidades. Estas são as pessoas que perdem as oportunidades necessárias para avançar e sair da pobreza, como o acesso à saúde básica e à educação – ou a educação universitária e a tecnologias modernas. Mesmo as necessidades humanas mais básicas, como estas, para muitos, nos países em desenvolvimento em todo o mundo, ainda não estão a ser satisfeitas, e os impactos climáticos fazem com que seja cada vez mais difícil saírem da pobreza e gozarem  uma vida saudável, produtiva e plena.
Em Moçambique, o Relatório de Desenvolvimento Humano do presente ano chega num momento oportuno, pois o país entra num novo ciclo de políticas, após as recentes eleições presidenciais de 15 de Outubro, ciclo que será articulado com o próximo Plano Quinquenal do Governo. Acredito que a este respeito, o relatório constitui uma oportunidade única para reflectir sobre as questões da desigualdade – questões que não são alheias ao país.
Assim, apesar de viver um dos períodos mais longos de crescimento económico acelerado experienciado por qualquer país do continente nas últimas décadas, a pobreza ainda afecta uma parte desproporcionada da população moçambicana ( 46,1%). De facto, de acordo com o inquérito às famílias 2014/15 do INE, os ganhos desta longa onda de crescimento económico acelerado não foram equitativamente partilhados por todos.
A desigualdade em Moçambique tem fortes componentes geograficas e tem incidencia sobre o género.  Por exemplo, a incidência da pobreza é cinco vezes maior na Provincia de Niassa (60.6%) do que na cidade de Maputo (com 11.6%);  as taxas de analfabetismo são sete vezes maiores em Cabo Delgado, 60.7%, do que na capital do país, com 9.5%. As mulheres, por outro lado, são menos suscetíveis de serem alfabetizadas do que os homens, onde as taxas de analfabetismo chegam a atingir 49.4%, contra 27.2% para os homens, de acordo com o censo de 2017. As mesmas desigualdades reflectem ao nivel do acesso ao telemóvel (22.4% vs. 30.8%), acesso à internet (5.3% vs. 8.1%) ou posse de  conta bancária (6.6% vs. 12.2%). Além disso, em termos de rendimento, em Moçambique a desigualdade agravou-se ao longo do tempo, tendo o coeficiente nacional de Gini  aumentado de 0,4 em 1996/7 para 0,47, no último inquérito aos agregados familiares de 2014/15.
Neste contexto, é imperativo que o Governo e os actores do desenvolvimento em Moçambique se juntem para conceber formas de abordar o flagelo da desigualdade no país em todas as suas vertentes e dimensões, a fim de evitar que estas desigualdades alimentem desavenças e tensões sociais e finalmente coloquem o país num caminho de  de crescimento económico mais inclusivo e de desenvolvimento sustentável e garantam que ninguém seja preterido ou fique para trás. 
A maior exposição de Moçambique aos impactos das mudanças climáticas e o potencial que estes têm para alargar o fosso dos padrões de vida entre os que estão no topo e os mais desfavorecidos, torna este apelo particularmente urgente. Atente-se que os protestos que hoje ocorrem no mundo reflectem nao so as preocupacoes do quotidiano, mas as angustias que o futuro projecta. Alguns advogam que estamos na “idade da ansiedade”, pois as pessoas estao preocupadas com o seu futuro, particularmente em virtude da sombra da crise climatica e das transformacoes tecnologicas das nossas sociedades. 
A sua riqueza em recursos naturais, por outro lado, incluindo os recursos de gás natural, proporcionam uma oportunidade única para abordar estas preocupações de uma vez por todas. O PNUD,  parceiro de Moçambique há muitas décadas, renova o seu compromisso de continuar a apoiar nos esforços de redução de desigualdades para um desenvolvimento sustentável. 
*Representante Residente do PNUD em Moçambique
(Publicado no A NAÇÃO impresso, nº 642, de 19 de Dezembro de 2019)

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