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Covid-19

Da normalização das coisas sérias

Por: Natacha Magalhães

Às vezes paira no ar uma sensação de que não vivemos nesse planeta, antes pelo contrário, somos uns privilegiados a habitar numa redoma de vidro, espessa o suficiente para não deixar passar nada. Nessa redoma, chega-se ao ponto de, perante todas as evidências de que afinal, ela não é tão inquebrantável assim, preferimos ir na fé e pensar que Deus é cabo-verdiano.  Talvez nessas horas, será preciso viajarmos até um passado bem recente, onde brincávamos com coisas sérias, gozávamos com alguns sintomas de um surto que já se tinha instalado por cá, apelidando os sintomas de “virose” ou em tom jocoso, algo como “sakudim djan bem”. Estão lembrados? 

Ademais, há coisas outras que realmente deveriam, de alguma forma, nos tocar, nos incomodar. E não nos afetando, e não falando nelas com a seriedade necessária e contínua, correm o perigoso risco de caírem na normalização e, consequentemente, na indiferença nossa de cada dia. 

Por estes dias, o mundo real vive suspenso, inquieto, angustiado. Tudo o que realmente se passa, sabemo-lo de forma completa e atualizada através imprensa internacional. O COVID 19 prossegue com a sua avassaladora cavalgada. Agora é a Itália, tão perto de Portugal, tão perto de nós. De sexta feira, dia em que foi anunciado o primeiro caso de morte, à data de segunda feira, já eram centenas de infetados, quatro mortes, uma dúzia de cidades isoladas por decreto, eventos cancelados, incluindo um dos maiores carnavais do mundo, o de Veneza e a celebre semana da moda de Milão e ainda jogos de futebol. Sem titubeio. Com a firmeza por parte de um governo que entendeu o alerta da OMS para uma possível pandemia. Outros países vão dando firmes sinais que querem se precaver. As Maurícias deram um ultimato: os cerca de 300 passageiros de um voo da Alitalia, provenientes de Itália ou ficavam de quarentena ou regressavam imediato àquele país. E nós temos ligações aéreas com Itália. 

Agora já não é só a China. Um rol de países, em todos os continentes.  O vírus não dá tréguas e a OMS, pela voz do seu diretor-geral, já veio declarar o coronavírus como uma ameaça mundial “muito séria”, possível pandemia, exortando os países a serem solidários na partilha de informação sobre a doença. Por outro lado, aquela organização reconhece o direito de todos à informação verdadeira, não apenas sobre a doença, mas igualmente sobre de que forma está cada país preparado para lidar com ela. 

Não podemos continuar a levar com as nossas vidas como se o que se passa fora da redoma não é nada connosco nem nos afeta, na crença de que nada nos atingirá. É uma questão de direito saber o que se anda por cá a fazer para prevenir a entrada de fontes de contaminação. Mostrem-nos, pois não somos todos alienados. Não queremos ter que pôr trancas à porta depois de permitir que o ladrão entre. Queremos garantias que todos os procedimentos em relação a todos quantos entram nas quatro fronteiras aereas do país estão sendo implementados e, por favor, que não se acuse a Comunicação Social quando quiser fazer o seu trabalho. Aliás, deve esta ser a principal aliada do país nessa luta. Para que não se ceda ao pânico e à desinformação.

Mas há outras coisas na redoma que nos devem inquietar e incomodar. Mas não. Ou melhor, há algumas que até preocupam, mas depende. Depende de quem é quem e até que ponto o assunto foi abordado e repisado pelos media e na esfera pública. O caso Marega, não obstante outras grandes leituras, teve também o condão de nos elucidar sobre a forma como muitos de nós nos posicionamos perante determinados assuntos. Sim, por um ou dois dias a grande maioria foi contra o racismo, o ódio, a xenofobia, essa grande maioria de cabo-verdianos a quem temas como a ascensão de movimentos populistas, os extremismos, as mudanças climáticas (alguém duvida de que vivemos os efeitos delas? Vejam o tempo como mudou, por estes dias), as guerras, as migrações, entre outros – todos eles relacionados-, passam totalmente ao lado, despertou para esse fenómeno que se alastra pelo mundo, de forma cada vez mais preocupante, que faz vítimas e permite a propagação de movimentos extremistas; e que também se faz presente bem próximo de nós.

Mas terá sido mesmo assim, um movimento nacional unido contra o racismo? Não terá sido, toda essa comoção mais a ver com uma seletiva empatia que nos leva a sermos mais empáticos e solidários com uns e não com outros, a escolhermos quem, e o quê é merecedor da nossa solidariedade e preocupação? Toda essa comoção é porque, de facto, já interiorizámos que o racismo, em todas as suas formas, é crime do qual não podemos ser coniventes, tal como Marega não o foi? Que não terá sido mera coincidência este ser considerado um bom jogador, de grande clube, de um país com o qual temos uma eterna ligação? Ou que o que aconteceu com o jogador teria mesma empatia/comoção caso não houvesse excessiva mediatização do caso? Não duvido disso. Não tivesse se falado e se escrito tanto na imprensa estrangeira, Marega teria igual descaso que teve o guineense humilhado dentro de um transporte urbano de passageiros, aqui mesmo entre nós, que teve que levar com a dupla humilhação de ser alvo de comentários racistas e xenófobos por parte de um condutor e ainda da risada de uns quantos que, certamente, dias depois, terão ido às redes sociais expressar comoção pelos insultos sofridos pelo jogador portista.

Isso nos remete à uma outra análise. A da grandeza e atenção que damos aos fenómenos que por cá vão acontecendo e de que forma a sua não mediatização, ou o silêncio de cada um, acaba por normalizar fenómenos inaceitáveis e remeter-nos a todos a uma espiral de alienamento e indiferença. Agora só me vem à cabeça a notícia da menina de 12 anos, abusada sexualmente por um taxista, na Ilha do Fogo. Estive a pesquisar a notícia e só a encontrei em dois órgãos públicos. Mas esse é só um exemplo. Um de muitos outros, de outras naturezas.  

Um caso só vira acontecimento importante se a Imprensa assim o quiser. Se alguém denunciar, repisar e repetir. Um caso só se torna causa quando a Imprensa – e não só! -, entenderem que há problemas que não podemos tratar com superficialidade sob o risco de se normalizarem e nos tornarem completamente insensíveis. É que se assim permitirmos, daremos aos monstros permissão para se acercarem da redoma e quando dermos conta já eles estarão instalados e…todos pagaremos um pouco por isso. 

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