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Opinião

Leave No One Behind – Justiça Social e proteção do ecossistema económico em Cabo Verde

Por: Monica S. Vieira Rodrigues

As desigualdades estruturais escancaradas pela pandemia do coronavírus a nível global têm demonstrado as fraquezas da economia de mercado e a globalização, e Cabo Verde não foi poupado. A nível nacional, as desigualdades sociais já começaram a demonstrar que a injustiça social não é o caminho. A estrutura económica não está preparada para uma crise pontual como essa pandemia ou situações de catástrofes naturais.

 Nessa situação de crise as questões dos Direitos Humanos são de extrema importância na medida em que as pessoas não são afetadas da mesma forma. As medidas de proteção social para as famílias adoptadas e anunciadas para assistir aos menos possidentes  apresentam critérios dúbios e subjetivos nas suas implementações, ademais, com probabilidades de intensificar as práticas injustas de distribuição de bens básicos às famílias menos favorecidas, que por si só são  medidas ineficientes  e incapazes de resolver a situação de penúria em que vivem a maioria das famílias que dependem da informalidade da economia e não atendidas pelas  políticas públicas nacionais; quer a nível social, económica, habitacional, etc…

Tendo em conta que o país não dispõem de um sistema de distribuição pública de cesta básica a nível nacional e local para além do sistema de pensões para pensionistas, pensão para idosos e pessoas com necessidades especiais, diante da situação crítica com a declaração do Estado de emergência caracterizada com a suspensão dos direitos fundamentais urge repensar o modus operandi do Estado em acudir a maior franja da população que não estão enquadradas nessas medidas. Visto que com a ansiedade e as incertezas generalizadas em relação ao COVID-19, o acesso a necessidades humanas básicas como a comida e água, habitação e medicamentos, trabalho e remuneração depende fortemente de onde o indivíduo se encontra nas hierarquias sociais e partidarizadas que estruturam a sociedade cabo-verdiana nas quais afetam significativamente crianças, idosos, pessoas com necessidades especiais, famílias nas zonas rurais e periféricas economicamente mais vulneráveis.

Sem deixar ninguém para trás não deveria ser apenas conversas em tempos de vacas gordas num escritório fechado com ar condicionado. Ela ganharia mais relevância na sua aplicação agora e nos tempos de crise como esta que vem expondo as deficiências do sistema nacional com uma análise aprofundada na perspetiva do triângulo de violência de Johan Galtung. Embora necessárias no que concerne  ao  direito colectivo à saúde, as estratégias de isolamento social adoptadas pelo Executivo não coadunam com a realidade da sociedade cabo-verdiana, onde 12 % do PIB provém da economia informal e um sector com rápido crescimento, com atividades predominantemente exercidas pelas mulheres rurais no meio urbano (INE, 2015). Perante essa situação e com uma tendência acentuada para a negação dos direitos humanos à maioria, devido aos critérios de seleção dos beneficiários estabelecidos, que são representadas maioritariamente pelos jovens e mulheres, mais de metade  continuarão excluídos  no novo esquema de distribuição.

 No último relatório do INE (2018) disponível  sobre o perfil da pobreza em Cabo Verde,  o país continua a ter 100 mil pessoas a viver na pobreza, e deste número, 50 mil, vivem na pobreza extrema. De acordo com as informações das medidas divulgadas pelo Governo, 30 mil destes serão contemplados, porém estatisticamente falando 40 % desse universo os seus direitos humanos fundamentais não serão salvaguardados. E a maioria destes (à data de escrita deste artigo) não estão inscritas nos tais cadastros sociais únicos que segundo Guy Standing é uma das medidas discriminatórias e paternalistas. Outra das questões que chamam a atenção são relativamente ao emprego no sector informal, segundo os dados do IMC – Módulo do Sector Informal 2015, a maioria das mulheres que operam no sector informal são auto empregadas (88,9%).

Dito isso, o país não pode permitir a perda do seu ecossistema econômico, depois de passar essa pandemia. Todos os elementos da cadeia de valor, nos diferentes sectores, desde o produtor a fornecedor de mandioca no mercado, até o técnico de manutenção dos hotéis devem estar em boas condições físicas, financeiras e psicológicas para retomar as suas actividades de forma a assegurar a sustentabilidade económica do país. Para isso, na óptica de proteção do ecossistema económico durante e pós-crise, os mais vulneráveis económica e fisicamente devem igualmente desfrutar total e livremente dos seus direitos à saúde, à habitação e à uma renda fixa regular, como um bem naturalmente adquirido, gerido e monitorado pelo Estado. 

O momento pós-pandemia COVID-19 é uma oportunidade para repor a justiça social e de género em Cabo Verde. Por conseguinte, nesse contexto, para garantir a sustentabilidade económica e a liberdade de escolha diante das lacunas nos critérios preteridos pelo Governo junto às famílias mais desfavorecidas.

A morosidade e a burocracia característico do comportamento institucional típico de Cabo Verde mostram que a cesta básica não é uma medida sustentável. Primeiro, as cestas básicas é determinado baseado nas condições das famílias e não no indivíduo, o que implicaria numa distribuição injusta e desigual. Segundo, as  autoridades ditam o que as pessoas devem ter e comer esquecendo das famílias com crianças, idosos e pessoas com necessidades especiais que necessitam de ser respondido à altura, sem esquecer dos produtos como papas, leite, absorventes e fraldas, etc.. Terceiro, deliberadamente ou não essa medida perpetua a estigmatização dos destinatários, assim como a mentalidade de subserviência e medo de perder o emprego devido às condições precárias do mercado de trabalho (caso das empregadas domésticas), num estado com um governo que diz ser liberal democrático, porém  ainda paternalista. E por último, de acordo com a entrevista da Ministra da Educação, família e inclusão social datada de 31 de Março de 2020 no Telejornal da RTC sobre o método de distribuição dos subsídios através das câmaras municipais é um processo custoso e muito propenso ao populismo, clientelismo e politicismo  e, constitui igualmente, uma humilhação dos beneficiários e o desdém por parte daqueles que irão estar no terreno em contacto  directo com as pessoas. Ainda, essa estratégia  apresenta-se certas dificuldades em administrar e gerir de forma objetiva e justa como tem provado ser ineficiente vários estudos sobre programas de assistência social e alimentar nos países em vias de desenvolvimento como  a Índia e alguns dos países da américa do Sul (Standing, 2017). 

As propostas que se seguem servem como estímulos para repensar-mos na estrutura social, burocrática e paternalista tradicional que vigora em Cabo Verde, onde os burocratas decidem o que pensam que as pessoas em situações de extrema pobreza querem e precisam. Além disso, reapresentam alternativas que  garantem e salvaguardam os direitos as necessidades humanas fundamentais,  liberdades económicas e de escolha dos cidadãos e contribuintes nacionais e estrangeiros durante e pós-crise:

Transferência direto de dinheiro às famílias em condições de extrema pobreza, através das redes de telecomunicações declarando o custo zero de taxa de transações; Para isso, dentro dos termos legais ainda inexistentes, pelo que necessitaria de uma boa articulação e vontade da sua implementação entre as entidades competentes de telecomunicações, bancas e desenvolvedores de aplicativos móveis através do NOSI, SISP, Banco de Cabo Verde, etc. e as duas operadoras (CV Móvel e Unitel TMais); 

Criação do voucher aos trabalhadores formais e funcionários do estado  financiadas pelo Governo que dariam acesso às compras nas pessoas que dependem do sector informal e empreendedores de Regime Especial de Micro e Pequenas Empresas (REMPE), em parceria com as bancas para garantir o funcionamento e a competitividade do sector económico  pós-crise. 

Criar as condições especiais para atender as mães residentes nos bairros periféricos e mulheres rurais que vêm sendo fortemente afetadas pelas secas e pragas de gafanhotos enquadrando-as nas pessoas que trabalham no sector informal.

Rever todos os programas de assistência social e introduzir o sistema de rendimento básico fixo e regular indiscriminadamente a todos os cidadãos com fundos do mercado de carbono e taxas sobre propriedades e fundos de ambiente como um direito ao dividendo social, ambiental e climáticas.

Entretanto, uma das verdades incontestáveis é que esta pandemia veio demonstrar as fragilidades e falhas contínuas nas políticas sociais e no modelo de economia do mercado no contexto de globalização. A seguir, são apresentadas outros  assuntos sensíveis e de extrema importância neste período de crise que também precisam ser levados em conta nas discussões sobre o agravamento de injustiças sociais, tais como: o impacto físico e emocional desproporcional nas famílias menos favorecidas e nas mulheres nas classes afluentes dependentes emocional e financeiramente dos seus companheiros, assim como as crianças vítimas de abusos sexuais, com o recente estudo a denunciar que a maioria dos predadores são pessoas conhecidas e próximas.

Diante disso, os direitos humanos num país  em pleno Estado de Emergência continuam a ser um instrumento crítico nessa luta coletiva. Portanto, para proteger o nosso direito coletivo à saúde e salvaguardar também os direitos das famílias que dependem do sector informal e que não atendem aos critérios ou não chegam a ser reconhecidos como ilegíveis para deter o cadastro único, o Estado deve garantir as condições básicas para que pessoas possam ficar em casa e se auto-isolar. 

Para concluir, com a restrição à liberdade de circulação, isolamento social, o nosso direito coletivo à saúde precede os direitos individuais (Kathryn Sikkink), com impactos negativos visíveis nas famílias em condições mais precárias, sobretudo nas mulheres e jovens à quem o governo deveria ser mais assertivo e inclusivo com as suas medidas de forma a salvaguardar os seus direitos e dignidade.

Portanto, cabe a cada um de nós contribuir com atitudes responsáveis e que estão no nosso alcance a começar por ficarmos em “casa”, lavando as mãos e evitando aglomeração de pessoas. Precisamos colocar mais ênfase na responsabilidade de todos os cidadãos, e não apenas do estado. Enquanto jovens deste país, no país ou na diáspora, temos a responsabilidade de pensar sobre o que vem a seguir e o que precisamos fazer agora para garantir a sustentabilidade do  ecossistema económico, social e climáticas após a pandemia.

Referências 

Galtung, J. (1969). Violence, peace, and peace research. Journal of peace research, Vol. 6 No. 3, 167-191.

INE (2018). Perfil da Pobreza em Cabo Verde. Evolução da Pobreza Monetária Absoluta: 2001/02, 2007 e 2015

Standing, G (2017). Basic Income: And How We Can Make It Happen. pág. 232-246

Stiglitz, J E. (2012). The Price of Inequality.  

CARR Center Covid-19 Discussion Series (2020): Examining the Coronavirus from the Lens of Human Rights.

 

Publicado no A NAÇÃO, nº 658, de 09 de Abril de 2020

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