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Opinião

Estranho silêncio

Por: Carlos Carvalho

George Floyd 

Hoje, vai a enterrar George Floyd.

Hoje, todo o mundo conhece George Floyd.

Um Policial americano branco, Derek Chauvin, assassinou um negro. Um negro também americano. É este negro George Floyd.

Floyd entrou, assim, na história da pior forma.

Nada de novo na sua terra, os EUA,  maior potência do mundo. 

Nada de novo, pois, não era a primeira, não era a segunda, nem terceira vez que isso acontecia. Houvera no passado milhares de outros Georges Floyd, por isso nada de novo.

Nada de novo, não fosse a forma como tudo aconteceu, transmitido quase em directo por testemunhos, negros, brancos e “amarelos”. 

Foram uns eternos 8 minutos, pedindo para lhe deixarem respirar. Não o deixaram e acabou por morrer asfixiado.

A notícia correu o mundo. Um negro, matulão, algemado, jogado no chão, asfixiado até a morte por um polícia branco, e mais três observando a macabra cena. 

Nem nos tempos do ku klux klan. Estes, na maioria das vezes, agiam em zonas remotas, à coberto da noite escura, com máscaras, portanto, escondidos, porque agindo ilegalmente.

O assassino de Floyd fê-lo à luz do dia, com farda de alguém com autoridade. Floyd foi morto institucionalmente porque era negro.   

A história

Esse negro morto é descendente de negros levados para uma terra estranha, por brancos ascendentes deste branco, Chauvin. 

Esses brancos foram a terra que não era deles, dominaram os donos da terra, quase que os dizimou a todos. Os que restaram estão confinados numa espécie de “jaulas”, que nem animais exóticos, para curiosos irem ver.

Esses brancos, ascendentes deste que matou Floyd, foram os que levaram os ascendentes deste Floyd. 

Isso tudo aconteceu há centenas de anos.

Descendentes de Floyd e do branco que o estrangulou em praça pública tornaram-se “donos-proprietários”, habitantes de uma terra que não era deles. Mas os descendentes do assassino consideraram-se, desde o início, dono absoluto de uma terra alheia, que tomaram à força de todas armas existentes na época. Os donos verdadeiros e os outros, os trazidos negros, tornaram-se “marginais” numa sociedade dominada pelo branco.

Esses séculos todos foram de exploração cruel, de trabalho escravo, de castigos corporais inimagináveis, de violações e de matanças, sem qualquer remorso.

Nós e Floyd

A história de Floyd foi igual a nossa história, a história de nós, cabo-verdianos, com uma ligeira diferença. Aqui, nas nossas ilhas, até prova em contrário, não havia donos de terras. Portanto, tornamo-nos todos, pretos e brancos, ao mesmo tempo, donos das ilhas.

Mas fomos todos descendentes de escravos, por mais que nos custa aceitar esta terrível realidade. 

Fomos escravos, como os ascendentes de Floyd.

Fomos castigados, como os ascendentes de Floyd.

Fomos torturados, como os ascendentes de Floyd.

Fomos humilhados, como os ascendentes de Floyd.

Nossa irmãs foram violadas, como as irmãs dos ascendentes de Floyd.

Também…

Revoltamos, como os ascendentes de Floyd.

Fugimos, como os ascendentes de Floyd.

Violamos as mulheres dos brancos, como tradução de nossa revolta, como os ascendentes de Floyd.

Matamos os brancos, para defendermos, como os ascendentes de Floyd.

Hoje, nós vivemos nas nossas ilhas, livres e independentes, como supostamente vivia Floyd e seus irmãos, ex-escravos como nós. 

Hoje, é impensável nas nossas ilhas acontecer o que aconteceu e recorrentemente acontece com Georges, nossos irmãos negros.

Estranho silêncio 

Estranhamente, aqui, nas ilhas, um estranho silêncio se observa em relação ao que aconteceu com George Floyd. Talvez porque, aqui, é impensável acontecer o que aconteceu com o nosso irmão negro, Floyd, explique este nosso estranho silêncio…ou também porque foi só mais um Negro morto!!?? 

Ninguém se indignou publicamente!! Nem uma palavra de solidariedade!!

Estranho que, num passado recente, quando uns outros revoltosos com tanta injustiça atacaram, num país branco, um Charlie-hebdo, saímos as ruas, passeamos, manifestamos, berramos, até compramos velas e t-shirts, onde escrevemos:

Je suis Charlie.

Hoje, ninguém saiu para dizer:

I’m George Floyd.

I’m a black man.

Hoje, ninguém saiu para berrar…baaaaaasta!! Floyd é nosso irmão!!!

Hoje, quedamos surdos e mudos!!! Perante tamanha afronta!!

Nem o cabo-verdiano normal, nem o governante, nem o 1° Magistrado, nem as Fundações, nem os nossos Direitos Humanos, nem os Centros de Estudos…ninguém saiu em defesa do Floyd e de nossos irmãos negros.

Nem o COVID e a quarentena justifica tamanho silêncio!!  

Que estranho silêncio!!

Dever de memória.

Mas, não fomos só nós que ficamos quedos e mudos.

A África toda, continente donde saiu George e donde saímos, que saíra à rua aquando do Charlie-Hebdo, ficou quedo e mudo. Um ou outro governante, isolado, timidamente protestou. Uma voz isolada timidamente protestou. Nenhum governante africano foi aos EUA assistir ao funeral de nosso irmão-negro.

Um ex-Ministro senegalês lembrava há dias o discurso de Malcolm X no Cairo há quase 50 anos, discurso pronunciado a convite dos líderes africanos de então. Malcolm X, um dos mais  carismáticos lideres da luta pelos direitos do Homem Negro nos EUA, teria lembrado seus irmãos-negros, dirigentes dos países africanos recém-independentes de que a África tinha/tem um dever moral para com todos os negros do mundo, por outras palavras, um dever de memória, um dever de proteger todos os negros no mundo. 

Ao que parece os nossos actuais líderes estão fazendo como Pilatos…lavando as mãos como se a África nada tivesse com o que acontece com os negros no mundo.

O silêncio dos dirigentes africanos de hoje é ensurdecedor!! E … É VERGONHOSO!!

A liderança

Quando Malcolm X fez esse discurso, a África tinha efectivamente líderes, havia lideranças no continente. 

Depois de 50 anos, o mundo mudou. A África mudou.

Hoje, não há liderança no continente. 

Já não há N’Krumahs, Nassers, Ben Bellas, Hassans, Keytas, Houphouets, Senghors, Sékous nem Nyereres. 

Não há nem Cabral, nem Mandela. 

Também, no mundo, já não há Malcolm X.

Não há, em África, uma voz que o mundo oiça, uma voz que o mundo respeite. 

O nacionalismo africano, o orgulho negro é, hoje, uma coisa estranha, tão  estranha quão o silêncio continental perante o que o mundo negro, e mundo todo está vendo e vivendo. 

As palavras de Malcolm X passaram para a história. 

Os lideres actuais não dignificam nem a África, nem os africanos, nem os negros do mundo. São na sua grande maioria uns fracos, mendigando as migalhas de países que nossos antepassados fizeram o que são hoje. Esses países todos só são o que são porque antepassados de George e nossos antepassados criaram a riqueza daqueles que, hoje, nossos “dirigentes” estendem as mãos implorando esmolas.  

Assim, depois da morte de George Floyd…infelizmente…muitos mais Georges morrerão.

Mais Georges continuarão a ser espezinhados e a serem mortos na terra de Floyd; na Europa toda; no Brasil; em todo o lado onde haja negros.  

Os dirigentes africanos continuarão mudos e surdos porque continuarão de mãos estendidas, portanto, condicionados as esmolas.  

Negros americanos, negros do mundo, não contém com a África na vossa luta. Não contém com vosso continente de origem nas vossas lutas. 

Os Africanos não virão, NUNCA, em vosso socorro. 

George Floyd vai em paz. Que o Senhor te acolha no seu mundo…onde estão seguramente milhões  de teus antepassados.   

Mas, chegando lá, conta ao Senhor o que viveste, o que vivemos, aqui, em baixo, no mundo que dizem Ele criou. Talvez Ele faça alguma coisa por teus irmãos na tua terra e por nós teus irmãos-pedintes.

Como não posso nada fazer por ti, deixo esta minha Homenagem-revolta à ti e à todos os Negros, meus irmãos,  do Mundo.

Descanse em paz, George!!!   

 

(Publicado no A NAÇÃO, nº 667,  de 11 de Junho de 2020)

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